Cultura

Voo nocturno | Julieta Monginho

Esta é a história de Nina. Adiante será a de Nina e Jaime.

 

São quatro da manhã e Nina está empoleirada no telhado da casa sem janelas. Subiu ao telhado porque não sabia subir mais alto. Também desconhecia outra maneira de descer que não fosse voar.

 

Escadas não lhe serviam. Mãos e braços amigos não havia (os dela embaraçavam-se um no outro).

 

A casa tentou, mas não conseguiu oferecer-lhe mais do que o telhado. Primeiro entregou-lhe um corredor longo e escuro, onde ela julgou ver, pregadas nas paredes, paisagens que a chamavam para montanhas alvas e campos de papoilas. Depois propôs-lhe um quarto com vista para dentro de si mesma, sem espelho que lhe assegurasse um rosto. A seguir, uma gaveta no armário metálico. Por último um catre que abria e fechava como uma ostra. Nina seria a pérola escondida por baixo da almofada. Mas ela não conseguia respirar, nem como pérola nem como rapariga. As portas fechadas sobre os quartos habitados pelos outros residentes vedavam-lhe o acesso ao ar e às coisas curiosas do mundo. Os outros entravam e saíam, sombras, seres minúsculos, postos a carregar à noite, durante o sono, e postos a andar de manhã à noite, sem outro fim que não fosse formigar.

 

Ali, no telhado, Nina soltou os braços e soltou o grito 

 

– Filhos da puta. Cabrões de merda. O mundo inteiro, que se foda.

 

Inútil transcrever os insultos para mais uma participação policial, aos tantos dias do mês de tal do ano de dois mil e qualquer coisa. Não haveria queixosos. Tantos e nenhuns, porque éramos todos os que a tinham magoado.

 

– Voa, Nina, voa, eu estou aqui.

 

O bombeiro chegou, chamado pelo director, que não conseguia dormir em paz. Conhecia Nina do tempo anterior ao catre, bastantes vezes a resgatara de árvores e até do cume de um monte ermo, a dez quilómetros da terra. As vozes, estupefactas, interromperam-se à chegada do rapaz, que teria dezoito anos, quando muito.

 

A noite não estendia um colchão, como os que se vêem nos filmes, para amparar as quedas. Tão pouco a corporação de bombeiros desse povoado longínquo contava entre os seus recursos peça semelhante, por falta de verba para substituir o esburacado. O colchão seriam os braços do bombeiro Jaime, que os estendia amorosamente, como se Nina pudesse vê-los no escuro. 

 

– Passaste-te ou quê? A miúda tinha lá coragem de saltar, está naqueles preparos porque é doida, aquilo só fechada a sete chaves.

 

– Aquilo era atiçar-lhe fogo e prontos, não se perdia nada.

 

– Perdia-se a lenha e uma casa aproveitável. Não te metas nisso, Jaime. Deixa-a lá estar que isto é só fita, não lhe dou meia hora que não desça de rabinho entre as pernas.

 

As formigas mirones falavam, patas tremelicantes de fugirem dos seus lares à pressa, bocas ainda a mastigar migalhas de donuts e batatas fritas.

 

Falavam tão rasteiramente que Nina não as ouviria, por baixo dos seus próprios gritos. Conhecia-lhes o visco e as manhas, contra elas gritava. Contra nós, incapazes de escutar confidências de uma dor a meia voz. 

 

Ao bombeiro Jaime, que aprendera a cair não só de telhados, mas de muros erigidos em várias línguas e de colos desfeitos, caberia amparar a queda. À falta de colchão, avançaram os braços.

 

Na distância entre o telhado e o chão, prevaleceria a queda ou o amparo? O voo, que lonjuras podia percorrer? 

 

Os gritos de Nina desejavam encurtar distâncias, é certo. E se desdenhassem a lei da gravidade? Talvez Nina não quisesse aprender a cair, apenas encontrar um eco.

 

– Voa, Nina, eu estou aqui.

 

As palavras de Jaime eram o eco que ela procurava, sem saber. Se ao menos as pudesse ouvir. 

 

– Deixa-te disso, Jaime, já tens a tua conta de salvamentos, continuavam as formigas, ela desiste. Também nós já subimos ao telhado, em carreirinha, e voltámos a descer. Não há migalhas por lá, os gritos perderam-se na noite interminável, não resistem à fome.

 

–  Como é que subiram ao telhado?

 

Perguntou Jaime.

 

– Para nós as paredes não são um obstáculo.

 

– Há umas escadas a cair de podres, não aconselho.

 

– Existem cordas.

 

– Não tens uma escada gigante, como nos filmes?

 

Nem escada nem colchão. Jaime era um eco castigado pelos deuses, privado de voz audível, munido apenas dos braços que se estendem, repetindo apenas aqui aqui aqui aos ouvidos de Nina, no momento em que se lançava ao voo.

 

No beiral, os pés da rapariga resvalaram, mas pararam a tempo, curiosos para descobrir de onde vinha o grito que se opunha aos seus.

 

Aqui, aqui, aqui, repetia Jaime, enquanto contornava a casa e, através da escada podre, se aproximava de Nina. 

 

Aqui, aqui, aqui, continuou a murmurar ao seu ouvido, a ponta dos dedos tocando-lhe o cabelo, os braços pouco a pouco enlaçados à volta da cintura mínima. 

 

– Se quiseres, vamos voar os dois, eu seguro a tua mão.

 

As formigas, sem pescoço que lhes permitisse alcançar as alturas, nem ouvidos capazes de escutar murmúrios, regressaram a casa, em carreirinha, mal a noite lhes ofereceu silêncio e as mandíbulas rangeram contra a fome.

 

Que podemos nós saber sobre o voo de Nina e Jaime?  

 

Simples, muito simples. Sabemos o que desejarmos. Se ouvirmos um estrondo ou um barulho estranho, voltaremos ou não a cabeça, conforme o impulso nos mandar. 

 

Mesmo que Nina e Jaime caiam nós vemo-los voar.

 

Julieta Monginho: Escritora e magistrada do Ministério Público.

Publicou o primeiro romance – Juízo Perfeito – em 1996.

Seguiram-se-lhe outros livros de ficção e um diário.

Dos vários prémios atribuídos destaca-se o Grande Prémio de Romance e Novela da APE/DGLAB, ao romance À Tua Espera (2008, com reedição em 2019).

Um Muro no Meio do Caminho, baseado na experiência como voluntária num campo de refugiados e Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio (2021), são os livros mais recentes.

 

 

 

 

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