Cultura

Venda Nova de lá | Thássio Ferreira

A gente dali vivia mais silêncios e preocupações do que risos. Se o rio secaria muito no inverno. Se as ervas bravas dariam conta do mal do Toninho, ou se teriam que o levar à cidade. Se quando viesse a camionete do armazém haveria de trazer todo o encomendado, e se os preços não teriam subido muito. Tinham lá seu humor. Mas a última moradora que achava graça do nome do lugar: Venda Nova –– abandonado por qualquer novidade há tanto tempo que nem venda tinha mais, ninguém se lembrava desde quando –– morrera já há muito, sem nunca ter conhecido a palavra ironia.

 

Era um distrito rural esquecido como nem os distritos menos esquecidos acreditavam existir mais. Parado no antes de tudo: internet, tevê, luz elétrica, calçamento nas ruas. Só a poeira e o vento –– e a camionete do armazém, todo mês –– lembravam de visitar. Nem candidato, em época de eleição. Nem ninguém do governo, quase nunca, por razão nenhuma. Só muito às vezes mesmo.

 

Os vazios se estendiam como se nunca acabassem, fosse aos olhos, fosse quase à imaginação. Especialmente a do menino. Para ele, era o mesmo que o mundo findar ali depois do horizonte. A camionete devia de ser milagre de deus, trazendo coisas de um outro mundo chamado armazém e carregando embora um tanto de milho, coco babaçu, carne de charque, às vezes guabiroba, e uns artesanatos feitos pelas mulheres. O menino achava bonito, o artesanato.

 

Deus ele conhecia porque a professora falava. Chegara jovem ao povoado, acompanhando o marido, pra lá de trinta anos: missionários. Ele morrera, ela ficara. Deus, a camionete e umas doidices ralas que ele às vezes imaginava eram tudo mais ou menos a mesma coisa pro menino. Mas não imaginava muito. Nem mesmo o rio ele nunca tinha se perguntado de onde vinha, ou pra onde corria. Só gostava de tomar banho. Saboreava as sensações: o toque da água, o chão mole no fundo, a faísca cegando quando o sol refletia. Ouvir os passarinhos. E o vento, sempre, sempre. 

 

Então um dia. Tudo muito rápido, dali pra depois. Primeiro o engenheiro: sozinho. Numa camionete diferente, mais brilhante. De roupas bem limpas, barba toda retinha (dava para ver os pelos começando a nascer depois da linha do corte), mastigando alguma coisa que não engolia nunca.

 

Estacionou em frente ao salão que era escola e igreja, bem na hora da aula dos mais pequenos, Zé entre eles: caçula. Não era dia da camionete, e as crianças correram à janela para espiar do que se tratava aquele ruído de motor. Menos Zé: só de preguiça. O engenheiro sorriu para a plateia, se achegou à porta. Uma curiosidade plácida no rosto da professora.

 

–– Boa tarde. A senhora é a Dona Emmily?

 

–– Boa tarde. Sou eu.

 

–– Desculpe atrapalhar. Eu me chamo Hermes. Me disseram lá na cidade pra procurar a senhora. Posso lhe falar um minutinho? — E sorriu de novo.

 

Enquanto ela caminhava até à porta, ele percorreu o olhar pelo salão pequeno, e piscou de um olho só para Zé, que o observava parecendo a criatura menos curiosa do mundo.

 

Estendeu o braço para cumprimentá-la, enquanto explicava:

 

 –– Satisfação em conhecê-la, Dona Emmily. Na prefeitura disseram que a senhora é como uma líder aqui, que os moradores respeitam. Eu sou engenheiro de uma empresa chamada Vento Norte. A senhora já deve ter ouvido falar de energia eólica…

 

–– São como uns moinhos de vento, não é? Andaram falando na cidade. 

 

–– Isso, exato. A gente chama de torres eólicas. Cada torre tem cento e vinte metros de altura, e sustenta uma hélice com três pás de oitenta metros de comprimento. Um gerador no alto da torre transforma o movimento da hélice pelo vento em energia elétrica. A nossa empresa vai construir um parque eólico: um conjunto dessas torres. Não vai afetar vocês, o parque vai terminar um pouco antes daqui. Mas eu vim avisar. Explicar. A empresa comprou as terras. Venda Nova não aparecia nos mapas, e quando fizeram os estudos pra construir o parque, ninguém veio até aqui. O pessoal do governo não falou nada. Só agora, que a obra vai começar. Na semana que vem. Mas vocês não precisam se preocupar. Só vai ter barulho, caminhões. Eu pensei que a senhora podia marcar um encontro com os moradores, pra eu falar isso tudo com eles. Explicar.

 

–– Eu… Tem as crianças… Tem gente na roça…

 

–– Não é pra agora. Pode ser amanhã. A hora que for melhor. Eu vim pra isso: pra explicar. Pode ser?

 

–– Eu vou falar com eles. O senhor vem no fim do dia. Quando o sol baixar. Eu vou tentar…

 

–– Está muito bem. Agradeço muito sua ajuda, Dona Emmily.

 

Uma pausa.

 

–– A gente vai ter luz, é?

 

Outra pausa.

 

–– Olha, não num primeiro momento. Eu posso explicar melhor amanhã, pra todo mundo. Mas é que a energia do parque não pode ir direto pras casas, é como se fosse uma energia muito forte, tem que ser adaptada antes. E nada disso estava previsto, os cabos vão direto pra cidade. Como eu disse, ninguém avisou a gente. Mas estamos fazendo estudos.

 

–– Ah…

 

–– Bom. Então até amanhã, Dona Emmily. Quando o sol baixar. Muito obrigado de novo.

 

No dia seguinte: a reunião. O engenheiro repetindo o que dissera à professora. Assegurando que nada iria mudar. Só barulho e caminhões, por um tempo, e depois as torres. De costas para o vilarejo. O povo aceita, afinal. Uma novidade em Venda Nova, então. Mas luz não. Quem sabe depois.

 

Quando as obras começam, ele volta algumas vezes, ora sozinho, ora acompanhado. Advogados, gente do governo, outros engenheiros. Como diabos haviam deixado passar aquela comunidade bem nos fundos do parque? Agora é responsabilidade dele garantir que isso não atrapalhe. Busca ser gentil. Confiança é a arma do negócio. Trata todos pelo nome, compra frutas, artesanato. Traz até uns livros infantis para as crianças. Ouve reclamações sobre a poeira das obras, diz que vai tratar disso, mas já já tudo fica pronto. O governo tem pressa. Não precisam se preocupar. 

 

Uma vez o Zé pergunta:

 

–– Seu Hermes, essas torres que vão fazer, como que ela é?

 

— É parecida com um cata-vento, Zé. Você sabe o que é um cata-vento?

 

— Não.

 

— Você vai ver. Depois eu trago um desenho pra você.

 

Em pouco tempo, fileiras de torres brancas são plantadas na paisagem, a perder de vista quase até à cidade. O governador vem da capital para a cerimônia de inauguração, nas bandas de lá, mas a população do distrito não é convidada. Nem fica sabendo. Ali é muito longe.

 

A novidade não traz muita novidade, afinal. As hélices rodopiando. Mas para o menino aquilo é uma enormidade. Que ele não entende bem, mas é. Como se tivesse mudado o mundo todo. Ele se inquieta. Pergunta a Dona Emmily:

 

— Como funciona aquele troço, professora? 

 

Ela responde um pouco desconcertada: 

 

— Com o vento. 

 

— Isso não explica nada. Vento leva roupa do varal, arranca teto, dobra o capim. Mas como que o vento faz rodar no mesmo lugar aqueles pauzinhos enormes, sem arrancar eles daquele outro pau em pé? Isso que eu quero saber.

 

A professora mais desconcertada:

 

— Isso eu não sei.

 

E fica por isso mesmo. Mas uma curiosidade se entranhou no menino. Ao menos isso de novo. Aquilo é uma enormidade. Mudou o mundo.

 

O engenheiro volta outras vezes. Na estrada de terra que parecia quase nem existir, antes, de tão pouco usada, e agora margeia o parque com a largura de uma rodovia, repara: o menino sentado numa pedra, olhando as torres. Desce do carro.

 

–– Oi, Zé.

 

–– Oi. 

 

Abraçando os joelhos, como estava ficou. Olhando os cata-ventos de aço. O engenheiro senta ao seu lado, percebendo naqueles olhos uma fascinação vítrea que a gente perde a capacidade de sentir quando cresce. 

 

–– Bom, e agora, Zé, você acha que elas são parecidas com o quê?

 

–– Com nada. É diferente. Mas é bonito…

 

–– Você não acha parecido com nada? … Um mandacaru? 

 

–– O senhor acha que eu sou besta, ou besta é o senhor de achar que isso parece mandacaru. 

 

O engenheiro ri, dessa esperteza franca tão diferente daquelas veladas a que está acostumado.

 

— Sei lá, alto assim. Espichado.

 

— Muita coisa é alta. O céu é alto à beça. Mas parecer é outra história. 

 

Ele concorda com a cabeça, e vira os olhos também para o parque.

 

–– Como que o vento roda aqueles pedaços lá? Não é pesado?

 

–– É e não é. É pesado pra gente segurar, por exemplo. Mas não pro vento girar. O formato deles é feito pra isso. E lá em cima venta mais forte.

 

–– Ah. E se cair? Se ventar muito muito forte. Como que não cai?

 

–– Cai não, Zé. Não precisa se preocupar. A parte que gira está bem presa na torre. É tudo feito com muito estudo, sabe? Não precisa se preocupar.

 

–– E como que isso faz luz? (Pausa) Eu nunca vi luz. Só de lanterna. E agora essas vermelhinhas que têm ali no pé dos troço.

 

–– Isso é mais difícil de explicar… Pensa assim: você perguntou se a parte que gira não cai quando venta forte, certo? Imagina que essa força do vento entra na torre, desce, e vai por dentro de uns fios embaixo da terra até onde tem que acender a luz. 

 

–– Mas como que o vento vira luz?

 

–– É como se o vento agitasse umas bolinhas bem pequenininhas que tem dentro de um fio de metal lá na outra ponta, aí essas bolinhas ficam tão agitadas, se mexendo tanto, que isso gera calor, e o calor gera luz. Como o fogo de uma vela, sabe? Ou quando você esquenta um fio de metal, você já viu? Ele parece que acende.

 

–– Ah. (Outra pausa) — E com o rosto finalmente descongelado, num franzir de cenho e boca escancarada, comicamente incrédulo: — É??

 

–– Mais ou menos.

 

Ele torna a mirar as turbinas, girando, girando: pensativo.

 

–– Seu Hermes, eu queria ser vigia desse parque aí. 

 

O engenheiro não quer fazê-lo sentir-se mal pela pouca idade, o empecilho mais óbvio. Prefere dar-lhe a razão que daria a um adulto:

 

— Não precisa de vigia. Ninguém conseguiria roubar nada aqui. 

 

— Mas e se algum troço parar de funcionar? Precisa alguém olhando pra avisar.

 

— Também não precisa. Cada turbina tem um alarme que toca na central de controle, lá na cidade, se a hélice parar de girar. 

 

A resposta padrão sai tão automática que ele se esquece de adaptá-la para o menino. Zé não entende turbina, nem hélice, mesmo já tendo ouvido essas palavras antes. Mas entende alarme, e parar de girar.

 

— Mas e se o alarme parar de funcionar também? Tem que ter olho de gente.

 

— Não precisa — o engenheiro se limita a dizer. E diante do silêncio renovado, complementa: — Bom, eu preciso voltar pra cidade, Zé. E você não fique aí até tarde. Logo mais escurece, sua mãe pode ficar preocupada. A gente se vê. 

 

Mas já não havia razão para voltar a Venda Nova. A equipe da estação de controle agora seria responsável pela manutenção do parque, e poderia ir até o povoado, se preciso. 

 

Zé ia quase todo dia ver as torres. A distância é muito curta entre querer ser parte de algo que não se entende e querer destruir esse algo quando não se pode ser parte dele. A distância de uns passos da estrada. Uma pedra que se atira só para ver onde alcança. Começou a atirar pedras nas turbinas, tentando de algum modo quebrá-las, na esperança de que nenhum alarme soasse e ele mesmo fosse dizer ao engenheiro, lá no fim daquela estrada, depois do fim do mundo, cheio de razão, que: um dos troços tinha quebrado, e ele que tinha descoberto, e agora queria ser vigia, porque precisavam dele.

Mas elas nunca quebravam, e o menino foi cansando de tentar ser parte daquela enormidade, completamente muda, de costas para ele (girando, girando). Veio o tempo das meninas: havia no mundo outras enormidades mais ao alcance.

 

A luz nunca chegou a Venda Nova. Os moradores partiram antes. Primeiro a camionete já não vinha todo mês: o dono do armazém mandou avisar que não valia a pena. E o motorista falando que era melhor ir pra cidade, tinha bem bastante emprego. Depois que a professora morreu, só alguns mais velhos ficaram, até morrerem também. Sobraram as casas sem teto, levado pelo vento. Zé tentou emprego na central de controle, mas não era qualificado, disseram. Virou garçom num restaurante do centro, desespantado desse mundo depois da linha do horizonte, que agora era o seu e parecia mudar a todo instante e ao mesmo tempo não mudar nunca. Parou de pensar naquela enormidade de pás, que seguiam girando, girando, sem pensar nele também.

 

Thássio Ferreira: poeta e ficcionista, autor dos livros (DES)NU(DO) (2016), Itinerários (2018 — obra vencedora do I Concurso Literário da Ed. UFPR) e agora (depois) (2019), todos de poesia. Escreve a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, na Revista Vício Velho, e possui contos e poemas em publicações como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Jornal Rascunho, Escamandro — poesia tradução & crítica, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Germina, Revista Ponto (SESI-SP) e InComunidade (Portugal). Vencedor dos prêmios Off-Flip 2019 e Cidade de Manaus 2020, e finalista do Prêmio Sesc 2017, todos na categoria contos.

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