Cultura

Uma palavra fora posta do lugar… | Rui Werneck de Capistrano

Voltaire volteou o dedo no ar e sentenciou: 

 

Uma posta fora palavra do lugar…  

 

Tentou corrigir-se a tempo, mas o relógio de ouro escapou do seu pulso e saiu pela janela — voando. Dando tratos à bola, amaciando-a no joelho e rolando até o pé em concha, ele lembrou de um contemporâneo que usava mal e abusava sexualmente das palavras esdrúxulas e tentou — novamente: 

 

Uma posta lugar do palavra fora… 

 

Parou e resolveu que consultaria os búzios. Foi quando Hemingway entrou na sala, colocou um tigre recém-abatido no sofá, encostou o rifle na parede, tirou do bolso da roupa de caça a garrafinha de uísque e entornou um gole longo e — respingante na roupa. Em seguida, limpou a boca com as costas da mão, viu Voltaire aflito, e disse: 

 

Reescrevi trinta vezes o último parágrafo de Adeus às armas antes de me sentir satisfeito. 

 

Deixou-se cair no sofá e ficou tagarelando com o tigre sobre as correntes quentes do Golfo e a temporada de pesca. Voltaire voltou à carga: 

 

Uma do lugar fora palavra posta… 

 

Calou e escutou a risada larga de Georges Simenon atrás da cortina e, logo depois, o comentário: “Corto adjetivos, advérbios e todo tipo de palavra que está lá só para fazer efeito.” Houve certa apreensão no ambiente. 

 

Caro Georges – disse Hemingway – veja que belo exemplar abati logo ali no quintal. Creio que ele é um jovem tigre: nem usa bengala! Riu desbragadamente da própria piada, já exalando uísque por todos os poros. Mais um gole e limpou a mão com as costas da boca — de tão bêbado que estava. 

 

Graham Greene — que em sua autobiografia chamou a benzedrina de coautora de um dos seus livros mais conhecidos — lutava para sobreviver, sustentar a família com li- teratura e escrevia O poder e a glória. Aí, como o livro não avançava, ele resolveu usar benzedrina. Num ritmo louco, durante as manhãs, escrevia duas mil palavras sem qualquer enredo. À tarde, lúcido, mal conseguia pôr quinhentas palavras em O poder e a glória. Naquela hora, entre seus pares, confidenciou:

 

The confidential agent foi escrito pelo fantasma de outro homem.

 

Voltaire dava voltas pela sala — queria concatenar as ideias e agarrar seu próprio fantasma: 

 

Posta palavra do lugar uma fora… 

 

Parou e viu o Coelho Branco entrando pela porta, lépido, arrumando os óculos, e perguntando: 

 

Com licença, Vossa Majestade, devo começar por onde? 

 

Pensando que fosse com ele, por causa do Vossa Majestade, Hemingway não resistiu, fazendo mira com os braços esticados na direção do Coelho: 

 

Ah, se eu rifle tivesse aquele meu alcance ao. Um tiro! E o pronto estaria texto. Enxuto. Bang! 

 

Riu de novo. Simenon balançou a cabeça desaprovando. Ele havia consultado seu médico alegando estresse e o doutor perguntou se ele estava escrevendo alguma novela. Quando o escritor respondeu negativamente, o médico foi incisivo: “Pois comece uma já que o estresse acaba!”

 

Horacio Quiroga, que já estava morto nessa época, chegou à famosa página ímpar do seu decálogo e desfechou:

 

— Imagine que esse relato só tivesse interesse para o pequeno ambiente de seus personagens, dos quais você poderia ter sido um. 

 

Dos presentes àquela reunião informal, Tchecov já havia cortado tudo o que não fazia parte íntima da história e por isso havia se enregelado nas estepes siberianas. Ele aplaudiu Quiroga mais para esquentar as mãos. 

 

Julio Cortázar interveio. Sacou um soco certeiro do seu último round bem no meio das fuças de um desordeiro:

 

Um verso admirável de Pablo Neruda — Minhas criaturas nascem de uma longa rejeição — me parece a melhor definição de um processo em que escrever é algum modo de exorcizar, expulsar criaturas invasoras…

 

Nisso, na pele do Rei, Lewis Carroll invade o recinto — teve que acalmar Hemingway e responder ao Coelho Branco, que já nem esperava resposta: 

 

— Comece pelo começo e vá até o fim. Então, pare

 

De repente, à frente de uma lufada de ar frio, entrou na sala Flaubert. Enfunadas, tremulando, suas roupas largas desenharam no ambiente um fantasma literário muito antigo. Três semanas depois, após escrever, cortar, tornar a escrever e reescrever, ele sentenciou: 

 

O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em nenhuma. 

 

Apenas o vento escutou, mesmo sem ter o que responder ao homem que levava cinco semanas para fazer uma página de Madame Bovary. E depois rasgava tudo e recomeçava. E tornava a rasgar e bater a cabeça na parede. 

 

Uns minutos mais e tudo parecia ter voltado ao normal. Simenon apenas sorria, Hemingway ressonava no sofá sonhando com leões na praia, Lewis Carroll jogava críquete com o espelho, Cortázar havia partido. Graham Greene contava os dedos. Flaubert ameaçava dar um soco num verbo intransigente e se martirizava:

 

Que importam os nossos tédios, nossas fraquezas, a lentidão da execução, e, em seguida, o desgosto pela obra, se continuamos avançando, se subimos, não importa o fim! Se galopamos, não importa a montaria! Esse mal-estar perpétuo é também uma garantia de escrúpulos, uma prova de Fé! Quando se cumpriu apenas a metade de nosso ideal, fizemos bonito, para os outros pelo menos, se não for para nós mesmos.

 

Nada aconteceu. Baixou um silêncio sepulcral. A calma reinava, mas não governava, pois Voltaire resolveu se concentrar, pedir silêncio — mais ainda? — e dizer: 

 

Uma fora palavra posta do estraga lugar mais bonito o pensamento

 

Todos aplaudiram e o uísque foi generosamente servido. O Coelho Branco não bebeu — por motivos religiosos. Hemingway bebeu — pelos mesmos motivos. 

 

Fotografia de Rui Werneck de Capistrano

Rui Werneck de Capistrano, escritor brasileiro.

Nasceu e vive em Curitiba. Publicitário/ escritor e fazedor de vídeos/ já ganhou vários prêmios, entre eles os do Concurso Nacional de Contos do Paraná, 1988, com o livro Máquina de escrever, e dos concursos Contos Jovens e Jovens Contos Eróticos da Editora Brasiliense. É autor de Bife sujo & cia. (com Neri da Rosa), Ovos do ofício, Tal de tanto de tal…, O conselho e Nem bobo nem nada.

Vencedor do Segundo Lugar no Prêmio SESC de Poesia Carlos Drummond de Andrade, 2011.”

[in: www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/parana/rui_werneck_de_capistrano.html

em 22.03.2022]

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