Um poema épico (em 108 cantos) | André Caramuru Aubert
“Nel mezzo del cammin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura,
Che la diritta via era smarrita1.”
Dante, Inferno, Canto I
“And the sea blue-deep about us,
green-ruddy in shadows,2”
Ezra Pound, Cantos
“Full fathom five thy father lies;
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes3”
William Shakespeare, The Tempest
“Your shelled bed I remember.
Father, this thick air is murderous.
I would breathe water.4”
Sylvia Plath, “Full Fathom Five”
- olho para as unhas dos dedos dos meus pés. unhas grandes, grossas, disformes. minhas unhas poderiam ser as unhas dos dedos dos pés de meu pai,
- envolvidas pela areia grossa avermelhada da praia deste lugar onde ele viveu
- onde vivo
- as pessoas morrem, e delas (sabemos) nada fica. por mais que sonhem com a eternidade, nada fica. eu me lembro bem das unhas grossas dos pés de meu pai e,
- cremadas, as unhas de meu pai viraram cinza
- que minha irmã espalhou no mato, numa área rural, num sítio qualquer
- que eu nunca soube onde era, que nunca me interessou saber. porque não era mais meu pai, nem suas unhas, eram apenas cinzas
- e há o tempo: quantos pés, quantas unhas já não se misturaram à areia grossa desta praia? pés dos povos dos sambaquis, pés tupinambás, pés portugueses, pés marinheiros, pés africanos, pés feitores, pés caiçaras, pés de meu pai, meus pés
- os cemitérios, uns perto, outros longe, estão cheios de pés que pisaram estas areias, mas a maioria (dos pés) se perdeu por aí, indo morrer em outros lugares
- dissolveram-se na terra, viraram cinzas, viraram nada
- meus pés e os pés de meu pai são muito parecidos. mas os dele eram maiores
- meu filho tem os pés (e as unhas dos pés) iguais aos meus, que são iguais aos de meu pai. minha filha tem os pés do tamanho e formato dos pés da mãe, mas as unhas (curiosamente) são iguais às minhas, e às de meu pai,
- embora (felizmente) menores
- pound disse que os poetas são antenas do tempo, mas não, acho que eles são os baixistas: dão o ritmo, mesmo que as pessoas, com ouvidos destreinados, não os ouçam
- pré-modernismo é rima, modernismo é colagem, pós-modernismo é nota de rodapé. nada disso importa, o que importa é que os poemas atinjam, simultaneamente, o coração e o cérebro. quanto mais forte o impacto, melhor o poema, quanto mais simultâneo o choque, melhor o poema, e sabemos como
- é precário o equilíbrio, para o poeta, entre transformar em universal seu umbigo e acreditar que seu umbigo é o universo, mas
- o maior dos desafios é limitar adjetivos, saber cortar, saber quando prosseguir, quando parar
- aqui, por ora, prossigo, acreditando que ainda há o que dizer, e
- as ondas continuam a quebrar na areia, a vir e ir. fazem espuma. espuma que em segundos se desfaz. os pés das crianças tupinambás brincando na muito fugaz linha d’água não deixaram rastro. os pés dos negros carregando sacas de café não deixaram rastro
- porque ninguém deixa, nenhum pé deixa rastros, além daqueles rastros que são muito fugazes, na areia da praia junto ao mar,
- principalmente na linha da maré, a linha que as ondas lambem sem parar
- havia um cemitério tupinambá aqui perto. hoje, no lugar, há uma casa de turistas. os corpos, dentro de urnas de cerâmica, foram levados para um museu. uma vez fui ao museu e, olhando para os ossos dos pés de um índio morto, pensei que ele havia pisado, muitas vezes, a areia grossa desta praia
- antes havia mais tainhas e mais tartarugas. nós as víamos nadando nas paredes das ondas, quando as ondas se formavam na arrebentação antes de quebrar
- os caiçaras saíam para o mar cedinho, empinando as canoas contra as ondas, remando de pé. conheci alguns deles. alguns foram amigos de meu pai. deles, não resta sequer um vivo
- sempre imaginei que a habilidade para remar em pé, saindo da praia para o mar, diante de ondas fortes, fosse uma habilidade que os caiçaras tivessem herdado dos tupinambás, mas
- hoje já não sei. há quatrocentos anos separando uns de outros, com grandes fazendas de cana e café entre eles
- como aquela fazenda aqui perto, em paraty, onde nasceu júlia mann
- quatrocentos anos nada mais são do que quatrocentas voltas da terra em torno do sol, na velocidade furiosa, cósmica, de 100.000 quilômetros por hora
- é bem rápido, isso
- como disse nabokov, a vida é uma fresta fugaz de luz espremida entre dois infinitos de treva, e
- será, portanto, melhor não temer a treva, pois é da treva e de ninguém mais o domínio absoluto do tempo, e
- (a lua aqui nasce no mar, o sol, aqui, nasce no mar). olho para meus pés, a areia grossa da praia grudada neles. essa areia gruda, e
- é curioso quando a vida imita a arte, ou seja, tem vezes em que o que vejo diante de meus olhos lembra uma marinha de pancetti, com a primeira camada verde-jundu, a segunda ocre-areia, a terceira safira-mar, a quarta azul-céu e, a última,
- branco-nuvem
- (ou branco-azul-sanhaço-acinzentado, não sei ao certo)
- meu pai também pintou este mar em muitos azuis, mas naqueles dias de oceano agressivo encrespado, o que me vem à mente são as marinhas de winslow homer, do caribe e da nova inglaterra,
- mares agressivos, inóspitos, até mesmo assassinos, pois
- ainda que nem tudo seja sol, nunca: sempre há as sombras, ainda que azuis, ainda que esverdeadas
- porque há as nuvens (sempre móveis), e há as copas das árvores (um pouco mais permanentes), e
- a varanda da casa em que nasci, onde eu brincava. uma casa parecida, mas diferente das caiçaras, essas sem varandas, sempre sombrias, com o cheiro azedo da lenha verde queimando nos fogões a lenha, para esquentar água e espantar mosquitos e aranhas e cobras.
- assim como aconteceu com mais de um marinheiro português, francês ou inglês que quatrocentos ou quinhentos anos atrás, meu pai envolveu os pés nessas areias, viveu, viveu e acabou por morrer aqui
- e, ao contrário de seus antecessores gringos, católicos, anglicanos ou calvinistas, morreu ateu,
- e não morreu de flecha, não morreu de espada, nem de arcabuz, ou de tacape, ou afogado na água. meu pai, a quem os pulmões traíram, morreu afogado no seco,
- antes, porém, eu nasci
- (e antes que eu nascesse meu pai quase morreu afogado nesse mar que tenho agora diante de mim, quando ainda não conhecia bem isso aqui e foi arrastado por uma correnteza, até que da areia arremessaram na direção dele uma corda, e
- ele, que por sorte conseguiu agarrá-la, foi puxado de volta à terra), e
- bem antes de mim, claro, nasceu meu pai. ele se lembrava de, criança, ter visto duendes brincando no jardim da casa do avô, dando cambalhotas, rolando na grama, felizes, gargalhando, em londres, e
- sabia, já adulto, que aquilo era fruto da sua imaginação, mas dizia que, ainda assim, a lembrança vinha nítida, perfeita e muito
- real, em sua mente, e ele também
- se lembrava ter visto, do telhado da casa, levado pelo tio, o incêndio do palácio de cristal, mas isso foi real, não imaginado, aconteceu na noite de 30 de novembro de 1936, e essas lembranças
- desapareceram, viraram cinzas, como o palácio de cristal, viraram cinzas junto com meu pai, porque por mais que eu as reproduza aqui, não é a mesma coisa, é óbvio, pois eu não vi, não vivi diretamente aquelas cenas, só escrevo o que ele me contou, e agora
- as unhas cascudas de meus pés, sujas de areia, aqui me fazendo lembrar de meu pai. assim como meus filhos um dia olharão para as próprias unhas
- (que não são ainda cascudas, porque unhas não ficam cascudas até que se atinja uma certa idade)
- e se lembrarão, talvez, de mim. e também do avô deles, e
- no começo não havia luz elétrica nem água encanada. era água do poço para limpeza, da bica para a cozinha. à noite era luz de lampião a querosene, que deixava a marca da queimadura do fogo na parede, e
- eu varri, para fora de casa, uma cobra, que se enrolou toda na vassoura. não era venenosa, e nesse tempo meu pai não morava mais com a gente, e
- eu não temia as cobras, mas tinha pavor das aranhas, era um tempo em que, ingenuamente, acreditava que a maior das fúrias era a que vinha com a chuva de verão, seus ventos, seus trovões, o céu escurecido
- preto-nuvem, e
- as goteiras espalhadas pela casa mal iluminada, panelas e bacias, umidade, sensação de frio mesmo que não fizesse frio, e agora
- entra forte, inesperado, um vento sul-sudeste, vento que crispa as ondas e faz carneirinhos no mar. a luz muda, as nuvens mudam, tudo muda, pois
- de madrugada chegará uma frente fria, é certo
- que a poesia reflete o povo em que é escrita: chineses e japoneses clássicos escreviam montanhas, árabes escreviam desertos, gregos e romanos escreviam o mar e a guerra, e
- todos eles escreviam saudade, mas cada um de um jeito
- os portugueses tentaram escrever um império maior que eles, um império que nem toda a coragem, nem toda a crueldade, poderia sustentar
- os moços de portugal se fizeram ao mar, largaram o pastoreio de ovelhas, o cultivo de oliveiras, se fizeram ao mar, mas aquilo era demais
- para eles. os portugueses se dissolveram no mar, se desfizeram no mar,
- os portugueses escreveram a saudade de um jeito que só eles puderam, porque só eles sentiram
- [é claro que todos eles – chineses, gregos, árabes, portugueses, além de irlandeses, franceses, alemães, italianos, africanos e brasileiros – escreveram também o amor e a guerra, mas não quero falar sobre isso, pelo menos
- não aqui, agora. e a verdade é que os brasileiros raramente escreveram a guerra, embora tenham escrito a tristeza e a tortura]. me ocorre agora que
- pedro nava nasceu na rua halfeld em juiz de fora entre a montanha e o mar, a rua que de um lado apontava para minas e do outro para o rio. ele no fim optou pelo mar, mas era da montanha que falava
- quando escrevia
- meu pai escrevia melhor com pincéis
- quanto a mim, escrevo o que posso, do que posso, como posso, mas admito que talvez possa menos do que amaria poder, se pudesse. ainda assim, escrevo, e
- cada um escreve de um jeito a própria vida, meus filhos escrevem o jeito deles, e não cabe a mim julgar,
- apenas amar
- o estranho de sua irmã ter lançado as cinzas de seu pai no mato, num sítio que você não conhece, é que não há um lugar para exercitar a memória, um lugar para visitar,
- para parar diante de uma lápide, ainda que sob a terra estivesse apenas um corpo em decomposição, ou ossos, ou
- que tivesse sido o corpo lançado ao mar, como nos sepultamentos marítimos, e aí o oceano seria a sepultura, e então
- mesmo esta praia onde agora estou seria um lugar de veneração e lembrança, mas não, isso não aconteceu, e não tenho aonde ir para visitar a memória de meu pai,
- assim como meu pai não teve um lugar para visitar a mãe dele, esquecida em algum lugar perto de hamburgo, disseram, onde ela morreu, depois
- de ter atravessado a guerra como voluntária da cruz vermelha, depois
- de tê-lo deixado em genebra com aquele avô calvinista que ele não conhecia (era a guerra, a guerra), em nome da segurança, e ter dito, fique aqui um pouquinho com seu avô que a mamãe já volta, para então nunca,
- nunca mais, e quanto a mim, com relação ao que ficou de meu pai,
- restam os quadros nas paredes, as anotações em páginas de livros, alguns objetos, até mesmo um velho pulôver de lã que herdei mas que não consigo usar, não sei se porque é quente demais, porque pinica demais ou porque é grande demais
- um pulôver de lã bege quase branca que remete aos dias de inverno em que meu pai ainda sentia frio, ainda escrevia a vida, respirava os livros, os quadros, as paisagens na janela daquele sítio onde viveu os penúltimos tempos,
- (porque os últimos, de fato, foram em minha casa)
- penúltimos tempos em que ele ainda corria, enfim, com as preocupações rotineiras transitórias comezinhas de cada dia, as contas a pagar, as idas ao supermercado, um pneu furado, uma lâmpada queimada, quando
- ainda fazia um comentário bobo sobre o preço da gasolina ou sobre um programa qualquer na televisão, o fato é que
- num dia você corre, gargalhando, atrás de uma bola de plástico colorida no caminho do mar,
- deste mesmo mar que tem agora diante de si mas que (você sabe) não é mais o mesmo, os gregos já sabiam, porque as coisas e os espaços jamais são os mesmos mesmo um segundo depois de agora, quanto mais algumas décadas depois, e
- você vai, pega a bola de plástico colorida, traz de volta, como um cachorrinho, e seu pai chuta de novo a bola para longe, e você corre de novo, gargalhando, e traz de volta
- e ele chuta de novo, e de novo. e num outro dia você dirige um caminhãozinho de madeira, a direção enfiada na capota da boleia, e seu pai, rindo, vai te empurrando,
- enquanto você loucamente vira a direção para a direita e para a esquerda, e o obediente caminhão de madeira vai para a direita e para a esquerda, e num outro dia
- seu pai mata uma jararaquinha enrolada em meio aos seus brinquedos, no quintal, antes que você fosse levado até lá para passar as horas miúdas da manhã, e num outro dia
- seu pai se foi e ninguém disse nada, ele se foi. ele simplesmente se foi, pronto, os adultos se desentenderam, e o que caberia explicar a uma criança de menos de três anos?
- ainda que vá entrar uma frente fria, à noite ou de madrugada – é certo – , o fim de tarde é lindo, o mar crispado, a luz do sol encontrando uma brecha entre as nuvens fazendo brilhar as encostas da ilha anchieta, morros
- carecas que um dia foram cafezais e canaviais, depois foram morros sobre uma vila caiçara e depois foram morros sobre um presídio e agora são reservas virgens, parques naturais protegidos por lei, e
- já vai longe, no dia, o cheiro de café saindo do bule, que perfumou o comecinho da manhã, enquanto durou, e
- havia goiabeiras, pitangueiras, abacateiros, havia jaqueiras e galinhas ciscando soltas pelo quintal, mas nada daquilo brilhava mais, ou pelo menos não brilhava como antes, porque seu pai havia sumido,
- e ninguém explicou nada, mas, precisamos admitir
- que, afinal de contas, você era uma criança pequena (nem mesmo havia feito três anos), que nada entenderia, se explicassem
- a areia da praia era mais vermelha e mais grossa, antes, creio que é porque havia mais mariscos na costeira, e as cascas deles, avermelhadas, ajudavam a compor e a tingir de sangue a areia e
- amanhã cedo, quando nos levantarmos da cama, a varanda estará cheia de folhas, o quintal cheio de folhas e de galhos caídos, além, certamente, de alguns ninhos de passarinho espalhados pelo chão de areia, e o céu
- vai estar carrancudo, porque frentes frias são assim
- mesmo
Notas
1 No meio da jornada de nossa vida / Eu me vi numa floresta escura, / Quando me perdi na caminhada.”
2 “E o mar, azul profundo sobre nós, / nas sombras, verde-avermelhado,”
3 Cinco braças lá no fundo seu pai repousa / Os ossos são de coral / Estas são pérolas que já foram os olhos dele”
4 De sua cama de conchas eu me lembro. / Pai, esse ar pesado é mortífero / Eu respiraria água.”
André Caramuru Aubert