Cultura

SUBMERSO NO VAZIO SUBVERSO

Exijam o vazio

Le Corbusier

 

o vazio existe nas ideias

o vazio existe inclusive 

em torno de cada termo 

 

o vazio talvez inexista

talvez seja só ausência

num estado da matéria 

 

se a solidão o invoca 

o vazio é quase objeto 

o vazio é quase coisa

 

a escultura ou estátua   

expõe o vazio em volta

em solitude imediata

 

se o vazio faz espaço 

quase tudo faz sentido

num sentido abstrato 

 

o vazio é compatível 

com ideias de ordem 

e de beleza absoluta  

 

(cavalos cortam o vazio 

atravessam os campos 

mas a vista não alcança) 

 

o vazio é todo etéreo 

revoga a ideia de acaso 

recusa toda concretude  

 

vestígios arqueológicos

têm um vazio ancestral

que remete ao paraíso 

 

(os cavalos na planície

vão em galope intenso

procuram outro vazio) 

 

se o desejo o invade 

um vazio se deforma  

e lá vem a desordem 

 

o desejo tenta ocupar 

uma ausência e vedar 

o vazio com um véu 

 

o vazio abole o desejo 

os tempos se abreviam

os objetos se desfazem 

 

o vazio é indesejável

ainda que não se saiba

nada de sua natureza

 

o vazio atravessa ruas

como numa procissão 

como se fosse preciso

 

os números enumeram 

uns vazios inumeráveis

em torno dos números

 

em cada curva incerta

um vazio se esquiva  

de toda possibilidade 

 

todo vazio é isento

à perdição de partir

à solidão de voltar

 

(se aumentam as dores 

pela morte da manada

o vazio se faz silêncio) 

 

conforme cada vazio

ausências se organizam 

sombras se sobressaem 

 

(gatos tendem ao vazio

quietos em seus cantos 

atraem os raios de sol) 

 

vazio não tem imagem 

nem claro nem escuro 

não vibra nem tempera 

 

(um mutum se invoca

nos vãos de seu canto 

vemos coisas ocultas) 

 

deserto não tem vazio

sombra não tem vazio 

vento não tem vazio 

 

tem vazio um porém

mais que um talvez 

ou uma noite vazia 

 

vazio consome tempo

e nesse mesmo tempo 

absorve sombra e luz 

 

se um vazio aparece 

muitas coisas somem 

vazando em através 

 

não há amor no vácuo

nem sangue nem morte 

nada mais que o vazio 

 

(sem enredo no vácuo

só se repetem no espaço 

um ou outro astronauta) 

 

se a memória esvazia 

o passado era transe 

o presente era tempo

 

(a ideia perdida flutua 

ao hipocampo onde ora

jaz um animal abatido) 

 

o vazio ocupa o útero 

e antecede esse sangue 

escorrendo em sua foz 

 

(em termos de vazio

uma pegada de onça

é quase um enigma) 

 

o cadáver se demora

em todos os trânsitos 

até encontrar o vazio

 

um tempo não se toca 

um vazio não se toca

só a ausência é sentida 

 

(em olhares serenos 

o elefante e a baleia 

contemplam o vazio)

 

(cavalos no pós-coito

desenham uns vazios

delimitam o território) 

 

um desejo é incômodo

se não tem mais como

ocupar um certo vazio

 

vazio não tem mistério

embora o mistério teça

o manto que o encobre

 

(uns cavalos escapam 

por rasuras que estão 

em página nenhuma) 

 

(a grande árvore se

suaviza com a onça 

deitada num galho)

 

o vazio é assombroso

quando some no nada 

entre tramas noturnas 

 

a água afoga a palavra

o vazio se estabelece

e o silêncio emerge 

 

(no exagero azul do 

corixo a sucuri tenta

serpentear um vazio) 

 

(panapanás espontâneos

desenham seus barrocos 

permeiam céu e inferno)

 

e a natureza o expulsa

o vazio é sua antítese

o vazio é seu avesso  

 

 

José Alfredo Santos Abrão, escritor brasileiro. é paulistano (1958), formado em Letras pela PUC de São Paulo (1984). Começou como roteirista nas fundações Roberto Marinho e Padre Anchieta. Depois foi redator e diretor de criação em agências de Florianópolis, onde viveu por duas décadas. Participou de exposições de desenho em São Paulo, Curitiba, Florianópolis e Recife. Escreveu e dirigiu filmes e documentários para cinema e televisão. 

Publicou três livros em poesia: “Pegadas de palavras” (edição do autor, Florianópolis, 1991), “Dias com nuvens” (edição do autor, Florianópolis, 1999), “Três poemas esparsos em tercetos imperfeitos” (Estúdio Semprelo, Florianópolis, 2019). Também publicou quatro livros em prosa: a novela “Outro norte profundo” (Barabô, Salvador, 2012), os volumes “Cronomáticas e outros contos” (Cepe, Recife, 2016) e “Sete relatos enredados na cidade do Recife” (Laranja Original, São Paulo, 2019), as novelas “Procurando Pessoa” (Kotter, Curitiba, 2020) e “Dois andantes e um satélite” (Cepe, Recife, 2020). 

Recebeu menção honrosa no III Prêmio Pernambuco de Literatura por “Cronomáticas e outros contos” (Fundarpe, 2015), o Prêmio 100 Anos da Semana de Arte Moderna pela novela “Andares entre dois Andrades” (MinC, 2018) e o Prêmio 200 Anos de Independência pelo poema longo (também inédito) “Ave Nossa Senhora da Independência” (Secult, 2019).

José Alfredo vive e trabalha no Recife (desde 2012), onde continua perseguindo a escrita e o desenho, além de atuar em produção cultural e serviços de comunicação.

 

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