Ciência

Somos animais “racionais”? – parte V | Marinho Lopes

Nesta quinta e última parte sobre vieses cognitivos vou-me focar na nossa intuição e egocentrismo.

 

O sentir que é verdade

O vizinho diz A, a televisão diz B, o tio diz C… Quem é que tem razão? Como é claro em todos os vieses cognitivos que já aqui falei (ver, por exemplo, parte I): somos preguiçosos. Analisar em detalhe a argumentação de cada facção dá trabalho… Até poderemos ser honestos e reconhecer que não temos competências e conhecimentos para de facto avaliar o raciocínio de cada um. Porém, a indecisão não é uma opção pois pode parecer ridícula. Não somos nenhum idiota que não consegue decidir quem tem razão, não é? Sendo assim, de forma consciente ou não, usamos vários “atalhos” para decidirmos quem vamos apoiar. Usamos, portanto, o gut feeling, isto é, a nossa intuição. Infelizmente, esta é condicionada por vários factores irracionais. Por exemplo, quando um argumento tem uma conclusão que nos parece plausível, o próprio argumento parece-nos mais plausível. Contudo, conclusões plausíveis ou até mesmo correctas podem ser alcançadas usando argumentos absurdos. Eis um exemplo com um silogismo:

 

Os humanos são mamíferos.


O Ronaldo é um mamífero.


Logo, o Ronaldo é um humano.

A conclusão é verdadeira, mas o argumento é falso (trata-se de uma falácia formal). O meu gato também é um mamífero, mas isso não faz dele humano.

 

Sofremos também do viés da simplicidade: é mais provável acreditarmos num argumento simples, do que num complexo. Porquê? Porque somos preguiçosos, claro. Compreender o argumento complexo pode ser difícil. Pode até parecer assustador. A alternativa é aceitar de forma implícita que não compreendemos e, por não compreendermos, poderemos olhar o argumento com desconfiança – “se calhar estão a tentar enganar-nos”. No meio disto também surge o receio de parecer idiota perante os outros: por um lado não podemos defender o que não compreendemos, por outro não podemos reconhecê-lo porque estaríamos a admitir as nossas lacunas. Assim, somos conduzidos a defender e a acreditar naquilo que compreendemos. Este viés explica em parte o porquê de as teorias da conspiração serem tão apetecíveis… E também o porquê de a ciência ser tantas vezes desprezada.

 

Podemos ainda recordar o viés da confirmação: se um argumento suporta aquilo em que acreditamos, então teremos uma maior tendência a julgá-lo correcto. Aliás, o mesmo se aplica a evidências de carácter aleatório: se por acaso aparentam apoiar a nossa visão, então já não parecem meras coincidências.

 

Estás a pensar que isto não se aplica a ti?

 

Viés egocêntrico

 

O viés egocêntrico implícito na questão de cima tem um nome específico: bias blind spot, isto é, é o viés da nossa cegueira no que toca a avaliar os nossos próprios vieses cognitivos. É muito mais fácil reconhecer vieses, falhas e defeitos nos outros. Quando olhamos para o passado para nos auto-avaliarmos, também temos uma tendência a recordar melhor aquilo que nos favorece. “Não sou perfeito, mas não me recordo de ter nenhum defeito.”

 

O viés egocêntrico manifesta-se de muitas outras formas. O nosso ego ilude-nos de tal forma que julgamos ter mais controlo e/ou responsabilidade sobre aquilo que nos acontece do que de facto temos. Por exemplo, pensamos que controlamos melhor os nossos desejos físicos do que os outros. “Comi o chocolate mas foi porque eu quis!”

 

Temos também uma tendência a confiar em demasia na nossa intuição. Por exemplo, estudos na área da Psicologia mostraram que nós somos capazes de responder a certo tipo de questões com um nível de exactidão inferior a 50% e ainda assim julgar que a nossa performance foi quase 100%.

 

O nosso egocentrismo não se fica por aqui. Não só sobrevalorizamos o valor das nossas opiniões, como julgamos que elas são mais originais que a média e também que suscitam um maior nível de concordância por parte dos outros. Além disso, estamos também convencidos que compreendemos melhor os outros do que os outros nos compreendem a nós. Em suma, a ilusão de superioridade é bastante comum. Por definição, há tantas pessoas melhores como piores que a mediana. Contudo, a maioria julga estar do lado dos melhores. Alguns até pensam ser muito melhores do que de facto são, como vimos com o efeito de Dunning-Kruger.

 

Como é que o nosso egocentrismo pode ser usado contra nós? Abra um jornal na secção de Astrologia e leia um texto qualquer. “Epá, isto faz mesmo sentido agora na minha vida… Ups, li no signo errado. Hmm… Sim, este também está certo!” Trata-se do efeito Forer ou efeito Barnum, é a tendência que temos de assumir que uma dada descrição (vaga) se coaduna com a nossa vida e/ou personalidade. Adivinhadores, bruxos e outros aldrabões usam este e outros dos nossos vieses para nos ludibriar.

 

Acrescento ainda uma outra vertente do viés egocêntrico: o assumir que o viés egocêntrico se manifesta mais nos outros do que em nós próprios!

 

“Bem-vindos aos narcisistas anónimos. Agora, antes de começarmos, falemos um pouco sobre mim.”

Recordo por uma última vez que todos os vieses retratados nestas cinco partes são, por definição, tendências. Não erramos sempre. Por outro lado, podemos ser mais ou menos afectados por vieses dependendo das circunstâncias. Não obstante, é importante tentarmos ter sempre presente esta nossa falibilidade racional. Lembremo-nos ainda que os vieses podem prejudicar não só a nós mesmos, como também os outros, por exemplo na forma de discriminação e estereótipos.

 

Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.

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