Cultura

Rua pica-pau

Izildro Montez morava numa improvisada e meio marginal rua descalça, enorme e concorrida, nominada Rua Pica-Pau, e os amigos zoavam com ele, por causa do nome da rua, porque ele era solteirão, porque ele boa pinta, meio metrossexual, então desconfiavam, duvidavam alhures, invasivos e extrovertidos etilicamente perguntavam de amores, de namoridas, de casamentos, de casos e causas, de bandeiras, de gênero, de minas pedaçudas, de predações, de faunas notívagas nas quebradas das redondezas, atentavam, davam corda, davam a entender, quando não sobre a rua que morava já politicamente incorretos, e assim estrupícios atentavam:

-Você vai e vem todo dia pela sua rua?

-Você adora ir pela rua dia e noite?

-E como você vem pela rua?

-E você vai e volta na rua Pica-Pau?

 

Era motivo de zoação. Enxeridos.

 

Ele nem ligava. Não era nem pela questão sexual, problema pessoal e intimo dele, que só a si mesmo dizia respeito, mas porque ele era mesmo gente fina, muito bem realizado, bem estudado, boa pinta, ganhava bem, para ele solidão era liberdade, com seus animais de estimação, de tartarugas e peixe elétrico, de  pulgas amestradas a um cão pangaré, de gatos e lagartos, e assim ia levando as gozações em nome da bonita e arborizada rua meio clandestina no mapa que morava, no Parque dos Príncipes, zona oeste da cidade de São Paulo, até porque achava a rua e o bairro e o povo e o lugar um pedaço de belo caminho. 

 

Mas, como todo ser humano sensível, claro, numa metrópole beirando ao cinza-balão, que o sistema era bruto, e assim tinha altos em baixos, às vezes cismas de desconexão que a alma ferida causava assomos de depressão. Sua terra era tão longe de SP. Itararé, sua mãe viúva que amava tanto, sua família, seus parentes italianos alvissareiros. E livros, discos, telas, sua casa parecia um museu, e ele ainda brincava de dizer que era o próprio a múmia paralitica dentro dela, um sobrado cor de maçã verde.

 

E lá vinham os amigos e estrupícios do banco, em festas concorridas, que sua chefia era alvo, e a bendita rua de nome pica-pau aparecia em chistes, alusões, ilações, achismos, chatices, mesmices, chutes na sombra, que realmente tinha muitos pássaros, flores a dar com pau, árvores com copas antigas, cardumes de insetos, entre as inúmeras riquezas injustas de São Paulo da força que erguia e destruía coisas belas, como muito bem cantou Caetano Veloso seu ídolo e  referencial de cultura e amor a arte.

 

Pois foi num desses dias, soturno, coincidência de signos e presságios, lua cheia de agosto, mês de cachorro louco, talvez problema de hormônio, passando dos cinquenta, ou, ressaca, quem sabe, talvez porque no vai-da-valsa tinha abusado do vinho argentino Carbenet de sua ótima adega particular, talvez fosse a carregada pizza Marguerite com queijo provolone carregado e orégano a deus-dará, alguma coisa não caiu bem, não bateu bem, não foi na fiúza, o fígado, a mente, sofrências desparafusadas, e de repente, monstros, feridas e desajustes acavalaram junto ao medo do escuro, saudades de casa, tudo junto e misturado, e pensando na rua com aquele nome, nas gozações, atemporão e fora de si pela primeira vez na vida perdeu as estribeiras, o bom mocinho estrilou seus bichos grilos, estrebuchou, baixou o santo e, de uma hora para outra, caçou a caixa verde de ferramentas de seu finado pai, a única coisa que quis da parte da herança, arrumou formão, catou faca cega, raspadeira, pincel, lixa grossa, escova de aço, tinta vermelha, e garrou a rua, com seu pijama de zebra, seu tênis all-star, seus óculos de graus imitando John Lennon que ele também adorava, o Beatle que dizia ser contra bandeiras, exércitos, fronteiras, e com seu colorido casaco de general de almanaque cheia de bótons de Plinio Marcos a Bukowski e mesmo de David Bowie e de Glauber Rocha, e, sem pestanejar, desceu do salto e foi, placa por placa da rua, madrugada a dentro, raspando o nome Pica-pau. Surto? Será o impossível? Tem cabimento?

 

E de uma placa que raspou o nome PICA-PAU e mudou pintando para Rua FRIDA KHALO(*)

 

E assim foi para a segunda placa.

 

RUA SYLVIA PLATH

 

E raspava, lixava o nome Pica-Pau, e, toma:

Rua Ana Akhmátova

Rua Orides Fontela

Rua Clarice Lispector – Rua Alice Ruiz – Rua Mercedes Sosa, Rua Mia Farrow, Rua Marina Tzvietáieva, Rua …

 

Rua… e colocou o nome da matriarca, das seis irmãs antes dele – era um bruxo, um mago? – e foi colocando nome de poetas loucas, mulheres loucas, familiares atiçadas, a mãe guerreira, e seguiu-se o leque amplo de nomes de outras mulheres que ele adorava, pois não tinha competência para ser mulher, e as ruas viraram o nome de Rua Elza Soares, Rua Elis Regina, Rua Elvira Pagã, Rua isso, rua aquilo, quero dizer, rua essa, rua aquela, todas as placas com nomes de femininas mentes brilhantes que ele amava loucamente como fã e admirador, até que o guarda-noturno meio de larica que era olheiro de biqueira concorrida viu, notou, chamou o segurança de um condomínio perto, um tira corrupto com tornozeleira eletrônica em prisão domiciliar, que chamou a polícia, que veio com o camburão berrando feito vaca louca, que foi algemado, que, depressinha e aos supetões, a trancos e barrancos foi levado perante a incompetente autoridade corrupta da lei de um delegado ligado ao narcocontrabando informal e áreas de prostituição em quadras do Morumbi, Morumbi que em tupi-guarani quer dizer beronha (de lixão) e foi fichado em desconfiança, e foi sondado em um quantum por fora para fugir do flagrante, para livrarem a barra delezinho, patrimônio público, aquelas, coisas, aqueles papos-aranhas, entre propinas, cartéis, subornos, mas o topetudo Izildro já recuperado da alucinação que fosse, pesadelo a céu aberto, refugou de presto, claro, não aceitou corromper, era duro na queda, tinha crescido limpo e na retidão, sua formação, seus exemplos de meio e clã, tacharam-no de babaca petralha, de bicha enrustido, de metido a sabidão com tanto diplomas, de metido a sebo, e assim ficou detido para o bem da tal ordem e progresso da segurança pública da manada de cabo a rabo da insegura cidade entregue às moscas impunes da neoliberal corrução institucional em todos os níveis e da impunidade no atacado e no varejo.

 

Quando dia depois de pagar fiança foi solto, curso superior, cargos, currículo, residência fixa, ansiolíticos, psiquiatra, ficha limpa, vida-livro ótima, etc, com a cara e a coragem de ser simples e limpo pediu demissão do trampo de alto padrão, e de alto escalão, para surpresa dos entojados subalternos, lacaios e discriminadores homofóbicos, sacou alta grana do fundo de garantia, mais suas reservas em dólares, ações, poupanças, e, pondo a mochila verde-limão nas costas largas de descendente de italianos da Sicília, Itália, sumiu de vista, vendeu o apartamento, entrincheirou a grana, sumiu de circulação, e nunca mais foi visto nos quadrados e nas redondezas do lugar e imediações.

 

A instituição corrupta do município e do estado há décadas entregue e refém de máfias e quadrilhas neoliberais, nas mãos do organizado crime neoliberal no poder, protegida pela justiça corrupta, pela sociedade corrupta, pela mídia corrupta, com o aval da elite podre, e com superfaturamento de propostas de obras de prevenção em logísticas de trânsito e começaram a arrumar algumas placas que voltaram ao nome antigo e original de Rua Pica-Pau, umas e outras, só, claro, algumas, aliás, nem lixaram nem pintaram, abandonaram, outras depredaram, outras entre a riqueza de um lado e os cinturões de miséria crescendo de outro lado foram arrancadas, mas, estranhamente até, apenas uma placa cinza-cobalto ainda pode se ver, quando se passa perto de uma pracinha abandonada pelos podres poderes públicos, e lá está a placona machada de ferrugens, de poeira, de lodo, de sangue de vítima inocente e de alvos de tiros de milícias, e de muitos ângulos ainda pode se ler:

Rua Frida Kahlo

-0-

 

(*)

 

Pica-pau – Ave – O pica-pau, também chamado picapau, ipecu, carapina e pinica-pau, é uma ave da ordem Piciformes, da família Picidae, de tamanho pequeno a médio, com penas coloridas e, na maioria dos machos, com uma crista vermelha.  Nome científico: Picidae. Classificação superior: Picides

 

(*)

 

Frida Kahlo – Pintora Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón foi uma pintora mexicana.  Nascimento: 6 de julho de 1907, Coyoacán, Cidade do México, México – Falecimento: 13 de julho de 1954, Coyoacán, Cidade do México, México

 

Citação de Frida Kahlo:

 

“Espero que a partida seja feliz e espero nunca mais voltar.//Pinto a mim mesma porque sou sozinha, e porque sou o assunto que conheço melhor.//Tentei afogar minhas mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar, e agora estou sobrecarregada com essa decente e boa sensação.//”

 

Silas Correa Leite

Silas Corrêa Leite

Itararé-São Paulo/Brasil.

Autor de TIBETE, De quando você não mais quiser ser gente. Romance, 2017. Editora Jaguatirica, RJ

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