Cultura

Recordando Ana Johnson | Ana Johnson, Júlia Lello e Henrique Cayatte

A ANA JONHSON NO ‘BÂTEAU LAVOIR’

Júlia Lello

 

Imagino a Ana Jonhson no Bâteau Lavoir:

Sempre sem dinheiro, como os outros inquilinos. Boémia, divertida, louca, cheia de verve e sentido de humor, a rebentar de talento, produzindo sem parar, desenhando e pintando permanentemente, febrilmente, tudo lhe servindo de motivo, fumando e bebendo e deitando-se certamente com quem lhe aprouvesse sem se importar com mexericos. Sedutora e insegura, entusiasta e céptica, agnóstica e corajosa, vivendo de expedientes, tentando vender desenhos geniais pelo preço merecido, mas só os que não tivesse oferecido já: acabando por cedê-los por uma tuta e meia para sobreviver…

A Ana no Bâteau Lavoir teria sido uma grande revolução, pois teria mudado ainda mais as regras que já lá não existiam.  Apollinaire tê-la-ia notado, teria provavelmente sido amante de Picasso e fá-lo-ia rabiar de ciúmes, seria namorada-irmã  de  Modigliani a quem pagaria uns copos sempre que tivesse algumas massas, inspiraria as peças de Jarry com o seu non-sense, deslumbraria Gauguin  com a sua naturalidade sensual, seria endrominada e promovida por Gertrude Stein que lhe compraria algumas obras, competiria com Matisse e Braque e os outros todos e abriria caminho às futuras pintoras para serem consideradas  em pé de igualdade com os seus pares.

Mas só se nasce e vive onde Deus ou o Destino tiverem decidido. E a sorte, nestes casos de talento, conta mais do que se julga. 

Talvez já não haja artistas assim:  Assim tão generosos e tão livres, assim tão sensíveis e tão indiferentes a tudo, assim sociáveis  e autistas, desdenhosos com a vida e de bem com ela, tão geniais e incapazes de gerir a sua carreira, com tanta falta de sentido prático como cigarras, com aquele seu humor britânico diante dos absurdos do mundo. Por isso a Ana nem soube aproveitar o boom das Artes Plásticas na Lisboa dos anos 80. 

Mas se a Ana tivesse vivido no Bâteau Lavoir a esta hora a sua vasta obra seria certamente conhecida, os seus desenhos seriam disputados em leilões e fariam parte de muitos espólios.

A nós, seus amigos que ainda cá estamos, cabe-nos falar dela, dá-la a conhecer e divulgá-la. É este o projecto, que, por ser de toda a justiça, deve ser apoiado e partilhado.

Lisboa, 20 de Julho de 2019

***

 

“Ana Johnson_Pele vermelha”

 

Contra o assalto do riso ninguém consegue resistir”_Mark Twain

Não havia forma de não se adivinhar a presença da Ana na Escola.

Falo da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa – hoje Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa – no antigo Convento de São Francisco, ao Chiado, no Largo da Biblioteca.

Para todos nós a “Escola”.

Foi ali que a conheci no início dos anos oitenta. Há mais de quarenta anos!

Eu, um pouco mais velho e recém-chegado do norte da Europa e da Guiné-Bissau onde tinha estado como professor voluntário, e ela quase sempre rindo, enchendo os corredores amplos deste antigo convento que amplificavam tudo, desenhando e pintando e distribuindo uma ruidosa alegria que todos os dias surpreendia e se renovava.

Alegria que era uma cortina que escondia muito e revelava muito pouco. Por isso as suas gargalhadas alternavam com estados de grande e visível tristeza. Difícil.

Não havia como confundi-la. Cabelo vermelho com uma franja, e pele muito branca com sardas mas com uma pele vermelha de emoção. Como os índios, embora com uma forte raiz anglo-saxónica.

Era assim que eu a via e ouvia porque o seu riso chegava sempre antes dela.

Bilingue, saltava de idiomas com um à vontade invulgar sempre na busca da expressão certa, a jogar entre idiomas e culturas diferentes.

Também por isto a Ana era a todos os títulos especial e diferente.

A sua diferença era genuína, marginal e vertical.

Colegas e amigos, mantivemos entre nós uma amizade especial que se prolongou para sempre depois de ambos termos partido noutras direções na vida com um contacto infelizmente difuso.

É que falar aqui da Ana, à distância de quarenta anos, não é mesmo nada fácil.

A memória prega-nos partidas e foge aos ziguezagues. Esconde-se quando a queremos agarrar.

A Ana era visita regular, sempre surpreendente e inesperada, ao meu atelier quando ainda era na Rua Pascoal de Melo. Há mais de vinte e cinco anos. Falávamos e ríamos muito.

A sério e a brincar porque mesmo o que era a brincar era muito sério.

Partilhou comigo, e com outros, muito da sua vida de forma fragmentada sabendo implicitamente que nunca iriamos ferir a confiança que depositava em mim sobre a sua vida atribulada e a sua necessidade de afecto e de afirmação.

Nunca o fiz, e sempre que falei dela e da sua arte, procurei fazê-lo com o maior respeito e admiração pela sua vida, pelo seu talento e pela sua obra que está, infelizmente, dispersa. Tive uma enorme tristeza, como todos nós, pela sua partida antecipada não conseguindo viver e pintar muito mais como ela merecia.

O esforço colocado nesta edição pelos seus amigos mais próximos é um contributo sensível, inestimável e emocionante e a Ana iria ficar agradavelmente surpreendida soltando, claro, uma luminosa gargalhada de prazer que nos iria a todos contagiar.

E se alguém merecia mais tempo era ela, embora sabendo nós que esse tempo também a torturava de forma muito agressiva. Viveu sempre no limite e o desfecho foi um remate dramático para uma vida duríssima. Sabemos que sofreu muito e que a sua arte a ajudou a libertar-se ou ajudou-a a minorar o seu sofrimento solitário. Sofrimento ininterrupto feito de violentos combates interiores e permanentes. Diálogos bruscos e descontinuados entre a sua razão e o seu coração de que nos apercebíamos apenas à flor da pele.

As suas pinturas afirmavam a sua coragem e o seu brilho e estão aí vibrantes como sempre, testemunhos de um cunho único e irrepetível. Sempre sentimos uma enorme admiração pela sua produção artística. Para quem não desenha ou pinta será, porventura, difícil imaginar que as suas pinceladas, só aparentemente caóticas, eram afinal a afirmação de uma revolta e de uma profunda intenção. Pinturas livres, sempre livres, sempre com uma grande naiveté e com uma ousadia pouco comum. Infantis diziam uns, adultas digo eu. O “travão”, há quem lhe chame medo, que os artistas muitas vezes sentem no seu íntimo quando operam no papel ou noutros suportes aqui não existia. Desenhava e pintava com uma coragem inaudita, audaz, num gesto polimórfico absoluto e total. A Ana usava qualquer suporte, formato ou meios para se expressar mesmo que não fossem convencionais. Não conseguimos imaginar o que estava por baixo das camadas de tinta, na sua estrutura, a não ser a fusão de emoções e a necessidade e urgência em tornar tangível o que sentia.

Ana Johnson era e é única, livre e uma artista de corpo inteiro. Uma jovem mulher especial e frontal. Numa sociedade mais recuada, como era a nossa nos primeiros anos da década de oitenta, rompia com o conformismo menos de dez anos depois do fim da ditadura. A sua partida deixou-nos estupefactos e mais pobres. Muito mais pobres. A sociedade em que tinha grande dificuldade em se encaixar nunca teria a abertura necessária de a receber inteira e adulta e a Ana seria sempre uma misfit. Era uma artista marginal, arrisco a dizer assim, que teve a coragem intensa, tocante e em trabalhar em “contraciclo”. Era, como ainda hoje é, impossível de a “encaixar” numa classificação, numa corrente ou num grupo.

Só, mas sempre bem acompanhada, os seus amigos estiveram sempre com ela e nunca a deixaram o que visto a esta distância ganha uma enorme força. Como agora com a ideia desta edição.

A Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa poderia bem associar-se a esta homenagem já que a Ana foi uma aluna de referência embora nunca tenha havido um esforço – pelo menos visível – de ter um portfólio ou uma exposição com os seus trabalhos. Esta edição terá também de ir para a Escola e estar acessível na sua biblioteca, no seu museu virtual (site) e naturalmente na sua galeria efémera, para que todos os alunos e professores de ontem, de hoje e de amanhã possam conhecer – e apaixonar-se – por esta artista de excepção.

Numa edição que poderia ter uma capa vermelha. Como a pele dela ficava quando se ria.

Sempre rebelde!

Henrique Cayatte, Designer

 

(Lisboa, vista da Rua Victor Cordon), tinta da china e aguarela sobre papel, 29,5 x 20, 5 cm, 1985

 

Sauna (página de diário gráfico) aguarela s/papel, 161×21 cm, 1982

 

Piscina, Desenho a roting com lápis de cera sobre papel, 29×41 cm, 1980

 

The flautista, tinta e ecoline sobre papel, 40×25 cm, 1997

 

Amália, técnica mista: colagem e ecoline sobre papel, 21x30cm, 1995

 

(Menina de azul), acrílico sobre tela, 70x50cm, 1998

 

Circus, acrílico sobre tela, 100/100 cm, 2008

 

(Limoeiro que dá laranjas), acrílico sobre tela, 80x120cm, 2010

 

 

JÚLIA LELLO– (Maria Júlia de Fátima Soares Guimarães Lello) nasceu em Luanda, onde passou os primeiros anos, tendo depois vivido em Lisboa, onde também estudou e trabalhou. Os seus primeiros poemas datam da adolescência, mas só em 1982 sairia o seu primeiro livro de poesia. Para além de escritos e colaborações dispersas, por antologias ou imprensa de índole pedagógica ou cultural, publicou: Alguns textos de amor, Lx, E.A. 1982. Textos de Privação, Lx. E.A.1984, Textos Pretextuais, Lx, Europress, 1991, Os Vivos e os Mortos, Lx. E.A., 2011 (Poesia), Amores de Príncipe, Lx.,Lua Cheia, 1990 (Novela). O Concerto ou o Triunfo da Música e 9 poemas inéditos, Lx.,1991, Ass. Guilherme Cossoul, Dep. Literário (Teatro e Poesia), Virgínia Victorino e a Vocação do Teatro– Lx. ESTC, 2005(Ensaio). 

A sua actividade criativa ligou-se igualmente às artes performativas, pela participação em espectáculos, quer de teatro, quer de poesia ou musicais. Fez parte dos grupos “Teatro Emarginato” e “Oficina do Grotesco” e participou noutros projectos com grupos de teatro independente. Apresentou os recitais Dos dois lados do Mar, Palavras Ibéricas, Camões e o Amor, José Afonso e as Palavras, quer a solo quer acompanhada à guitarra. Licenciada em Filologia Românica, Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas, e formada em Teatro pela ESTC, dedicou-se também ao ensino e à formação de professores, primeiro como destacada na DGEB, depois no quadro da ESELx, onde foi coordenadora da Área das Expressões. Reformada do ensino oficial, continua a colaborar como voluntária em universidades senior.

 

 

Henrique Cayatte. Lisboa. 1957.

Designer e ilustrador com um vasto trabalho de design na área editorial, em museografia e no espaço público. Fundador e autor do design global, editor e ilustrador do jornal “Público” até 2000. Coautor do sistema de sinalética e comunicação da EXPO ’98. Foi responsável pelo design dos Pavilhões de Portugal nas exposições universais na Expo ‘98, Hannover 2000 e Aichi 2005 no Japão.

Co-comissário e designer das exposições Cassiano Branco ­ uma obra para o futuro, Liberdade e Cidadania – 100 Anos Portugueses, Engenharia Portuguesa do Século XX e 1990/2004 Arquitetura e Design de Portugal, na Trienal de Milão, Centenário da República, entre outras. 

Autor do design das revistas LER – duas vezes -, Egoísta, Atlântica, Cubo, entre outras publicações.

Design do Diário de Notícias [2006-2007].

Autor do design global do primeiro Passaporte Eletrónico Português e do Cartão Único de Cidadão. Presidente do Centro Português de Design entre 2004 e Abril de 2012. Integrou a direção europeia de design [BEDA The Bureau of European Design Associations 2008-2012].

Professor auxiliar convidado da Universidade de Aveiro desde 2004.

 

Ana Johnson (1962-2019).

Ana Johnson desenha e pinta com a facilidade de quem tem o dom natural de um grande artista. As suas pinturas e desenhos emergem quase sempre de uma criatividade espontânea numa linha expressionista lírica. As suas figuras expressivas surgem envolvidas numa combinação de cores muito característica e única na pintora. Ana Johnson nasceu em Lisboa em 1962. Filha de pai português e de mãe inglesa desde cedo começou a desenhar e a pintar revelando logo um traço inconfundível (que muitos consideram genial). Entrou para a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa com 18 anos e frequentou ateliers da Ar.co. Foi ilustradora da revista “Rua Sésamo” e são também seus os desenhos de dois livros infantis da autoria de Helena George. Participou em mais de 40 exposições individuais e colectivas e é de referir que numa exposição colectiva de estudantes o seu quadro foi o único a ser roubado.

Registo biográfico da última exposição, Lisboa, Galeria Abraço, 2018 

 

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