Cultura

Prelúdio | Regina Ruth Rincon Caires

 

Pela escuridão do quarto, imagina ser noite.  Ou madrugada…

 

Perdera a noção do tempo. Foram muitas mortes, muitos renascimentos. Tanta aflição, tantas dores, tanta luta! Mas, agora, vindo não se sabe de onde, é invadido por um deleitoso sossego.  

 

No silêncio, entrecortado pelo gotejar do soro no equipo, os pensamentos, de maneira incansável se avolumam, se atropelam como se disputassem uma corrida derradeira. E no peito, o retumbe do coração mais parece o bater das asas inexperientes do menino passarinho. Sabe que está longe disso. 

 

A inércia do corpo não lhe permite observar aquilo que não esteja na direção dos olhos. Vê o teto, apenas o teto. Ainda lhe restaram os ouvidos. Ouve perfeitamente. E sente o toque. Incomoda-se quando percebe os olhos mendicantes de Leninha. Sabe que ela procura uma certeza. Quer saber se ele está ali, se a escuta, se a reconhece.  Mas, infelizmente, não tem o controle da resposta. 

 

Leninha deve estar por ali, em algum lugar do quarto. Há um ressonar leve espalhado na penumbra, tão leve quanto ela. Companheira de vida, cumplicidade velada. Filhos não brotaram. Apesar da expectativa levada por toda vida, percebeu que a esperança escorreu pelos cantos dos olhos quando Leninha sentiu que as regras haviam cessado. Neste dia, chorou. Foi a única vez que se mostrou derrotada. Aconchegada nos braços ternos de Nestor, extravasou a dor da frustração. Alisava a barriga com desdém, com raiva, dizendo-se seca, estéril. Menosprezava-se.

 

E sabe que deveria ter amenizado a dor da companheira. O problema poderia não estar com ela! Nunca avaliaram, nunca procuraram orientação médica. Poderia ter dito isso a ela. Mas não disse. Talvez por orgulho, talvez por culpa. E ela nunca aventou tal possibilidade. Talvez por respeito, talvez por amor. 

 

Para ele, a vida era um querer sem freios. Eram metas, metas e metas. Alcançada a primeira, nem a degustava e já era sugado pela engrenagem da próxima, da próxima e da próxima. A vida era uma moenga de momentos, de sonhos. Para Leninha, não. Passava plena pelos minutos, pelas horas, pelos dias, pela vida. Talvez o constante brilho do olhar e a perene ternura do seu trato tenham norteado e protegido a caminhada confiante de Nestor. Para ele, isso era absoluta convicção. Pena nunca ter dito a ela. 

 

Há um ressoar de passos no corredor. Deve ser a enfermeira. Cerra os olhos. A voz suave, sussurrada, avisa que vai substituir o soro e ministrar um medicamento. O líquido queima e dá a sensação que vai rasgando a veia quando injetado na canícula. Certamente deve ser sonífero. Ou analgésico. Interessante que, hoje, as feridas das costas não latejam. O colchão d’água está mais suportável, refrescante.

 

A enfermeira sai e Nestor reabre os olhos. Ainda bem que Leninha não acordou. Continua ressonando, mansamente. Sempre foi assim, sono profundo, restaurador. Talvez seja pela ausência de remorsos. 

 

De volta à penumbra, os pensamentos voam para as palavras irreverentes da mãe, lá atrás. Ela dizia que todo moribundo, antes de morrer, apresentava uma melhora assustadora. Mas que isso não a enganava. Sabia que a morte era matreira e que só queria abocanhar a vítima com mais vigor.  Nestor sente vontade de rir, de gargalhar… A alma gargalha. 

 

Leninha acorda. Busca, com os pés, os chinelos no chão. Aproxima-se da cama. Agora ele a vê. Está colocada bem de frente, na mesma direção dos olhos dele. Bonita. Mesmo com os cabelos grisalhos totalmente desgrenhados, continua formosa. Serena. Mas os olhos embaciaram. Olha fixamente no rosto do amado, bem de perto. É possível sentir o respirar pelas narinas. Tão perto, tão longe… Nestor sente a carícia das mãos que passam pelos cabelos, pela testa, pelo rosto… Leninha fala com os olhos, abraça com o cuidado. E ele se abandona no abraço. Quer matar a saudade. Quer tocar aquele rosto, agradecer, gritar o seu amor. Impossível. Mas ela sente, ela sabe. Sempre soube.  

 

Nestor fecha os olhos. Quer emoldurar, na memória, aquele rosto. Quando os reabre, ela não está mais ali. Silenciosa, voltou ao descanso. E ele, segue envolto num turbilhão de pensamentos. Teima ser mais forte que a droga que lhe foi injetada. 

 

De repente, o peito inicia um repique. Batidas aceleradas do coração provocam certa confusão nas ideias, parece que o corpo todo estremece, uma onda de calor insuportável percorre as veias, queima. Depois, abranda. Chega um frio abominável, insano. 

 

Ele sabe que são as asas na constante luta pelo voo. Devem carregar o cansaço acumulado por tantos anos. Puxa vida, tem ainda tanta coisa para pensar! Mas está confuso. Não consegue conectar o fio do pensamento que estava por ali, com ele, ainda há pouco. E sente um cansaço incontrolável, os olhos pesam, as ideias fogem. Nem ouve mais o ressonar de Leninha. O gotejar cessa.

 

O dia ainda nem clareou e o soro foi retirado. Leninha tem a certeza da qual tanto se esquivara. 

 

Ele não está mais ali. 

 

O velho pássaro pousou.

            

 

Fotografia de Regina Ruth Rincon Caires

 

Regina Ruth Rincon Caires, nascida em Auriflama/SP em 07 de setembro de 1953 (68 anos). Casada, funcionária pública federal aposentada, tem dois filhos e um punhado de netos. Formada em Letras e Direito. Não possui livros publicados. Classificada em alguns concursos literários. 

 

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