Poemas | Solange Firmino
Mergulho
Voam em bando as aves
em cima dos pulsos dos espantalhos
são como as aves sem remorso
que devoram eternamente
o fígado de Prometeu
as mesmas que tentam até hoje
roubar as luzes dos girassóis de Van Gogh
suas aparições são prenúncio de morte
quando descem ao mar com precisão
podemos ouvir algazarras selvagens
elas sobem com os bicos cheios de caça
arrastam as nuvens ásperas
dispersam os restos pela ventania
nas alturas do céu encoberto
e nada mais se ouve
***
Caligrafia do mar
No horizonte o mar é uno
após o abismo de cada gota
que se estende na maré alta
tudo que sobra tem gosto de sal
genuína alquimia
desarticulado
até o vento é meio azul
quando levanta alguns grãos
onde a espuma dança
alargando as ondas descontínuas
***
Clássica
O que perdura eu canto
o que escapa também
o tempo decadente e o próspero eu canto
no sem-nome eu espreito
esperando o lirismo nos nascedouros
nas entrelinhas da Criação
nas vias tortas
de pernas para o ar
a fonte da Poesia reinventa minha voz
matéria-prima que não se recompõe
como a vida
***
Anti-herói
Monstros cercados de ventos crescem em torno de mim
rezas em pergaminhos pendem aos cachos em volta do
coração
como espinhos
o mundo fecha seus caminhos
dou de cara no asfalto bruto
invento uma guerra à la Dom Quixote
planejo matar os moinhos que teimam em ser gigantes
quando acenei eles olharam rasgando o vento
era meio-dia
sol a pino me cegou
mas ainda eram moinhos
talvez ressuscite Nero
e façamos um grande incêndio após o café
levaremos um arsenal em vez de Sancho Pança
abaixo do céu estrelado a solidão acompanha
o excesso de deserto em mim
pego um mapa e uma bússola
sempre atrás da minha donzela
a quem imploro amor eterno
quem precisa de bom senso?
sob os moinhos de vento eu dou vida
ao meu exílio e meu medo
***
Gramatical
Sou singular e plural
várias
para cada um, uma e única
às vezes longe
querendo estar perto
ponto final e vírgula
amo um dia de cada vez
falo sem reticências
mas finjo que nada sei
***
Orgânico
O ventre do verso imaculado
na sílaba que falta
in(verso) reticente
concreto
conduzido pela disciplina
da inesperada poesia
metáfora
***
Fascínio
O que me conquista na palavra é sua unha afiada
a sede insaciável do risco no papel
a língua que me invade e vira poema
encanta-me quando desafia
e quer aprisionar o momento
mas espera e ainda se diverte
malmequer
bem-me-quer
malmequer
bem-me-quer
fala rápido para contar os silêncios
transborda
***
Composição
Nada habita no poema
que não esteja a serviço de sua construção:
a solidão que vai sozinha
e nos separa
o silêncio que vem mudo e tudo consente
o sol que queima a superfície
e é tormenta
os pássaros que voam em bando
ordenados
repetidos
***
Conjugação do tempo
O futuro é o que será
sempre a um passo de acontecer
nascido na véspera
um suspiro que vai chegar
o futuro é um presente que precisa ser outro
para ser ele mesmo
o futuro se desconhece
ao mesmo tempo em que se desgasta
quando muito se espera
no último suspiro
quando nada mais houver para ser escrito
dito ou vivido
o futuro vira pretérito
mas antes
move o presente
e nos faz ser quem somos agora
futuro
destino de ser passado
***
Diante das marés
No trajeto da existência
percorro reinos
atravesso mares
sinto vertigem quando transito
pelas palavras que me cabem
e se manifestam à exaustão
percorro tudo o que me confunde e engrandece
desde a terra fértil que sabe da poesia
às lembranças
que escuto advindas
do mais longínquo recanto
transbordo-me de futuro
mas sua incerteza e caos são o único porém
no meu instante de ordem
todavia não preciso de resposta
do Universo que eu sei ser circular
a maré que se levanta
logo voltará a descer
Solange Firmino nasceu e vive no Rio de Janeiro, Brasil. É graduada em Português /Literatura pela UERJ. Em 2016, venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará, com um livro de haicais. Participou de diversas publicações impressas e digitais. Possui 5 livros de poemas publicados.