Poemas | Paula Vaz
Solistência
Então eu me comovo com as palavras
que não chegaram a ser usadas
os gestos que não chegaram a ser decifrados
e os olhares que refletem
o mutismo de todas as coisas
Algumas fotografias por exemplo
dizem tanto do silêncio a que estão condenadas
que poderiam ser definidas
como o próprio retrato da solidão
A beleza de certas paisagens
a angústia de nossas ânsias mais secretas
também fecham as gargantas
rarefazem o ar em nome da solidão
que atracada às circunstâncias
que não encontraram para elas um nome
anoitece-nos
A solidão das obras que ainda não foram criadas
dos livros que ainda não foram escritos
dos cantos sem melodia e que no entanto
já são fortes desejos de expressão
Porque o dizer preciso é preciso
O dizer preciso é preciso para a desmemória
a leveza do corpo e para os pássaros seguintes
Ia dizer passos Escapou
A solidão do corpo e seus ruídos
Da intuição avisada antes que se confirme
Das cartas que não chegaram ao seu destino
Dos diálogos que nada transmitem
e das vozes que já não se ouvem
porque não se amam mais
Cada coisa que nos ilumina
é também um motivo de sombra e poesia
É também estar só ao relento de uma letra
que inscreva no corpo a eficácia de uma voz
Sim
“Eu estou só
O gato está só
As árvores estão sós
Mas não o só da solidão
o só da solistência” como diria Guimaraes Rosa
A solistência é a solidão da existência
Porque não se cobre a solidão com companhias
Não se cobre a solidão
Ela se descobre
na curva de um caminho
nas clareiras que reúnem os seres
impossíveis de se juntarem
Um elo no silêncio de um olhar
Um gesto que carrega a suspensão do tempo
Um espaço onde se possa ampliar
e crescer em direção àquilo que é
Lugar onde se fala e se é ouvido
A alma e seu eixo
o prédio e suas paredes
contra o descampado poder do vento
As paredes úmidas pelo implacável poder das chuvas
e que ainda é casa
Perder o perdido acordando os pilares
A solistência é um estado que se alcança a conta-gota.
***
Em 2022
Em 2022
mais que ser poeta
quero ser poema
A tomada por onde a energia se conecta
O barco que transporta o impossível de dizer
A folha em branco onde floresce
um pensamento verde
A pedra livrada do caminho
A flor de Drummond que furou o asfalto
e nasceu na rua
Um pião desenrolando-se de um cordel
A divina diferença
da natureza animal
afagando o centro do humano
A face polida do enigma
O caos noturno mais vencido
pela espontânea alegria
O que não se pode reter
O beijo beijando
O abraço abraçando
A calma acalmando
Como o poeta moçambicano
José Craveirinha:
Quero ser tambor
Nem flor nascida no mato do desespero
Nem rio correndo para o mar do desespero
só tambor ecoando como a canção
da força e da vida
só tambor!
***
Arvorar
Era preciso pender-se ao sol e enfrentar o vento, reinscrever a ausência no coração do dia e ser moldada pela fauna, flora, e pela ranhura pongiana, para extrair da árvore a sua lição.
No tempo da caducidade, as folhas não se agitam contra as outras. Elas podem se deixar cair.
Os ramos se desprendem enquanto os troncos se expõem ao céu e ao tempo, mas já não havia o tempo.
Quando as árvores forneceram a sua fórmula, quando se tornaram aptas a deixar o mundo mudo e a nascer para a palavra, da madeira morta se fez letra, dos troncos a estrutura, do sulco o infinito. E o mundo ficou maior.
Arvorar: criar o próprio dicionário.
Recriar o bosque com palavras de dicionário.
Ainda é com palavras que se escreve. Raízes gregas, latinas, etimológicas, ancestrais.
Pode-se contorcer, perder galhos, folhas, mas do tronco não se sai, por mais que se recuse a identidade.
Um fio tênue se fixa na terra.
***
O Labrador
No jardim, agora, ele dá uma pisada
Soca a terra como quem ara
A chuva lhe escorre
pelos pelos
pegadas
encharca os buracos por onde passou
Leviana
não é a palavra deste gesto
Afinal, ele é um cão.
Não o condenem por isso.
Sejam tolerantes!
Inevitável querer canteiros
E esses olhos gratuitos
essa nobreza de quem sabe
que todo amor é mendigo
Essa tentativa de caber
nos contornos da casa
nos contornos do dono
nos olhos do dono
tão mendigos como o cão
como o amor do cão
Olhos que te espreitam
de qualquer lugar da casa
e que não te pedem nada
além de estar ali, presente,
e que por isso mesmo te
pedem tudo,
o que você não pode dar
Alegria de amor uma hora te machuca
Labra tua dor
e articula
pois se mergulha para valer nas águas
é porque sabe nadar
E não venham lhe pedir remanço
ou explicar-lhe com as palavras de Paul Ricoeur
que nunca sairemos saciados desta vida
já que sempre deixaremos um banquete para trás.
O Labrador não tem pachorra.
***
A esponja
Essa mania de se deixar inundar pelas águas,
consentir com a expansão,
e depois esse desejo de reclusão ao pouco,
essa vontade de voltar para casa,
retornar ao centro. O seco.
E pensar que nada disso é sempre suave,
esse ir e vir.
Ir e abandonar as formas,
vir e abandonar as águas.
Todo esse processo vivo de sístole e diástole:
corpo vivo que não se cala, a não ser no risco.
Corpo tornado linha,
tornado margem.
Apesar do tufão, agora é como se sorrisse por dentro,
com entusiasmo, mas sem alarde.
Até que lhe batam à porta,
até que lhe voltem a retumbar, no imo,
os empuxos do mundo.
***
A esperança
Se sua antena é maior que seu corpo
pode ser que você seja uma esperança
se seu corpo é verde
e tem o formato exato de uma folha
Se é capaz de incluir-se numa floresta
e camuflar-se ali
a ponto de fazer realmente parte dela
Se você canta como as cigarras
mas seu som é inaudível aos ouvidos humanos
talvez você seja uma esperança
Se seus ouvidos estão instalados em suas pernas
e é com elas que você escuta o rumo
que deve dar aos seus passos
se fica acordada durante a noite
não por insônia mas por gosto da noite
se tem o olhar voltado ao céu
no exato momento em que os joelhos dobrados ao chão
e se nessa posição em que parecia querer rezar
você salta para bem longe
se tem sempre a impressão de que a vida é curta
e você sabe que nasceu na primavera
que amadurece no verão
mas não suportaria o rigor de uma invernada
é bem provável que seja mesmo uma esperança
Se no outono como uma folha você cai
e deixa na terra a sua semente
porque essa sim resiste aos tempos frios
– encapsulada por uma casca na que se rompe na primavera –
e se não é de você mas de seus ovos
que nascem novas perspectivas
você que achava que era apenas uma folhinha
Bendito é um nome do fruto do vosso ventre Amém
Paula Vaz é poeta, escritora e psicanalista, autora dos livros Não se sai de árvore por meios de árvore. Ponge-Poesia (2014 ); A outra língua: amor (2016) e Deserto( 2018) editados e publicados pela cas’a edições .
Participa das antologias Da diferença (2021) Entrelinhas Entremontes: versos contemporâneos mineiros (2020), Da Solidão (2018 ), publicadas pela Editora Quixote Do, entre outras.