Cultura

Poemas | Hera de Jesus

O Beijo da Mulata

 

Os feixes densos do sol

atravessam as cortinas,

e diluem-se no espaço difuso

 

A sombra de um rosto circunspecto

projecta-se para as paredes ensebadas

de palavras. Promessas, algum destino previsto.

 

O rosto não beija a figura da mulata cravada na parede

o toque incisivo do beijo da mulata

na boca do seu estômago buliço

pontapeam – no para vida

***

 

A morte

 

Como um rasgo

de navalha

no íntimo das minhas entranhas

Não me feres mais

 

Conheço-te

de palavra, cor e dor

Conheço-te

profunda, gélida

e tristonha

 

Não te temo mais

Oh, morte!

desci tão profunda

as cortinas da tua sombra

 

Rocei a tua nudez

traguei o sabor amargo

dilacerante das lágrimas

saboreei a mais profunda tristeza

Não me tomas mais

Oh, morte! 

***

Ser Negro

 

É crioulo

É preto

É carvão

É escuridão

 

Preto da senzala

Sentiu o cavalo-marinho

marcar

na sua carne

por séculos, e séculos

Por ser negro

 

O sangue 

derramado

milhares

e inúmeras

vezes

de cabeças

degoladas

nos navios

cargueiros

nas plantações

no mundo inteiro

Por ser negro

 

As mulheres 

densoradas

Aos homens 

explorados

as crianças 

e idosos

descuidados

Por serem negros

 

Hoje

Não é mais

o cavalo-marinho

é o açoite

afiado das 

palavras que

nos atravessa

a carne

deflorando

e fazendo

sangrar

o mais

profundo

íntimo

Por sermos negro

 

É

Negro

mulato

Nem gente é

 

São negros

 

* Cavalo-marinho:  espécie de chicote feito com a pele do hipopótamo. 

***

 

Vínculo Maternal 

 

Na precocidade de menina

minha MÃE 

emprenhou

 

Uma sementinha

fazia sua moradia

dentro dela

 

A platinha

riscava poemas coloridos,

 e enigmáticos

 

imutáveis vínculos

entre Mães, e filhos. 

***

 

Chamanculo

 

Roço o

dorso dos

becos 

do chamanculo

 

Coração

suburbano

casas de madeira

e zinco

 

O aroma

das badjias

beliscam-me

resgatando

minha velha

infância

 

Brotei 

das tuas entranhas

Chamanculo

da poesia

da música

da alegria

da miséria

 

Nascí

Nasço

continuo

nascendo

em ti

Chamanculo

 

* Badjias- pequenos pastéis feitos à base de feijão. 

***

 

Ergue-te, Cabo Delgado!

 

O leite não rompe

mais do bico

a criança 

já não chora 

mais pelo seio

 

A face da moça

enviuvada

não se inflama  mais

em lágrimas

 

Os rios

tingidos de vermelho

secaram

entre o esterco

e o sepulcro

repousa a saudade

No horizonte

vislumbra-se a esperança

 

Algum dia

os tambores rufam

dançaremos Mapiko

Ode aos povos Macondes

somos todos Cabo Delgado

 

HERA DE JESUS  [Chamanculo, Maputo, Moçambique,1989] Começou a escrever desde tenra idade. De 2013 a 2017, participou e foi distinguida em alguns concursos internacionais de poesia. Tem textos publicados nas antologias “Soletras Esse Verso” (2018), “Fique em Casa” (2020) e “Linguagens e suas Tecnologias, manual do professor” (2020), ” No Cais do Amor” (2022).  Tem contribuído para as revistas Lidilisha, Soletras, Contioutras, Por Dentro de África, Escamandro, Avenida Sul, Mallamargens , Folhinha Poética, Cultural Traços/ Alta Cultura, e Germinaliteratura.  É membro da Confraria Brasil/Portugal.

 

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