Cultura

Pena Capital | Henrique Dória

 

de Coração, Solitário Labirinto

em publicação

A sentença não deixava margem para dúvidas: condenado à pena de morte. Os juízes e o procurador saíram da sala como corvos negros esvoaçando em silêncio, depois de um deles, o que estava no centro da mesa que me julgara, dizer bem alto está terminada a audiência, podem retirar-se.

Não escutara quase tudo o que tinha lido o juiz presidente. Para além do homicídio de que me acusavam, ele enredara-se em tantas obscuras elucobrações filosóficas e jurídicas que me perdi entre elas como me perderia num labirinto. Apenas ouvi o final da sentença depois de ele ter parado para pedir um copo de água, o que levou a uma interrupção e me permitiu voltar a ter consciência do lugar e do momento em que me encontrava. Retomou a leitura monocórdica da sentença e concluiu que, tudo ponderado, condeno o réu à pena de morte.

Aturdido, voltei-me para a advogada que o tribunal que me julgava tivera a caridade de nomear para me defender, e perguntei:

– Mas a pena capital não está abolida?

Ela esperou uns instantes para me responder, e do seu rosto de criança desesperada saiu um sim que me pareceu duvidoso, logo seguido duma explicação – sabe, os juízes são sempre muito imprevisíveis. Mas não tenha problemas. Eu vou recorrer, e a sentença está, por natureza, revogada. Venha ao meu escritório dentro de uma semana, pode ser na próxima sexta de manhã, que eu já terei o recurso tratado. Esta sentença é totalmente contra a lei, uma injustiça, uma crueldade. Repito-lhe: esta sentença está, por natureza, revogada.

   Quando ouvi pela segunda vez a palavra natureza fiquei transtornado. A natureza é sempre imprevisível, talvez ainda mais do que os juízes. E, sobretudo, cruel – pelo menos quando se trata de morte.

No entanto, confiei.

Temos de confiar em quem nos defende, mesmo que seja enviada pela caridade do Estado que nos quer condenar.

   Mas, enquanto tentava compreender o que me acontecera naquele tribunal, começou a correr no meu cérebro a palavra Maldoror, como uma mensagem no écran de cinema. Todos saíram da sala de audiências. Eu sentara-me novamente no banco dos réus a ver passar essa palavra maldita. O oficial de justiça teve de me lembrar – Vá, está tudo terminado.

Estava tudo terminado, e eu repeti para mim  mesmo Maldoror.

   Era a hora de voltar para o meu T0, no quinto andar esquerdo, de onde eu só conseguia ver a tristeza de um pequeno pedaço de céu. Estendi-me na cama e aí fiquei imóvel, sentindo-me já semi-morto a olhar o grande dorso branco do teto.

   Comecei então a rememorar o que me aconteceu naquele dia inacreditável.

    Na verdade só via a estupidez, a insolência e o absurdo misturadas com o acaso no comportamento dos homens.

    Eu nada tinha a ver com aquela discussão que dois tipos já tocados pelo álcool levavam no café, e da qual eu não recordo uma única palavra apesar de ter ocorrido na mesa ao lado da minha. Mas aqueles que pareciam amigos elevaram, subitamente, o já alto tom de voz e, consequência fatal, um deles pegou na caneca de cerveja e atirou-a em direção à cara do outro. Este desviou-se, e a caneca foi embater-me no sítio onde os lábios se juntam, rasgando-me a carne. Levantei-me e dirigi-me para o desconhecido que me tinha atirado a caneca. Ele, porém, não esperou por mim. Ergueu-se da cadeira e preparava-se para me socar quando lhe dei um pontapé nos tomates que o deixou prostrado. Mas não por muito tempo, pois, quando eu virava as costas para sair do café, ele veio atrás de mim, lançou as garras precisamente no sítio onde embatera o vidro grosso, e rasgou ainda mais as feridas, transformando-as em duas outras bocas que se elevavam para os meus olhos num esgar sangrento.

    Ao meu lado estava uma pequena oliveira que só quem trabalhava no café sabia – mas eu também sabia – ser de plástico. Para dar mais verdade à oliveira, ela estava plantada num monte de terra cercado por pedras brutas de diversos tamanhos. Instintivamente, peguei numa dessas pedras e bati com ela na cabeça do agressor, concentrando no braço toda a minha raiva. O embate da pedra na cabeça foi de tal modo violento que o desconhecido caiu de imediato, ficando com as pernas fletidas e as mãos sobre os joelhos, como um cão adormecido. Na sua cabeça abrira-se uma outra boca aterradora, por onde saía um pedaço de cérebro como uma língua.

O sangue escorria viscoso e suave dessa boca, a conduzir-me para o inferno.

    E, agora, eis-me dentro do inferno. Um inferno em forma de Maelstrom aspirando-me para o seu fundo.

No dia combinado, fui ao escritório da minha defensora para me informar das suas alegações. Assim, pensava ela, eu ficaria tranquilizado.

    O escritório da advogada era uma pequena sala com uma secretária, três cadeiras para os clientes, e uma estante ao lado direito da cadeira onde se sentava a advogada. Na estante havia sobretudo livros de poesia, romances e obras filosóficas. Eu já a vira ler As Formigas, de Boris Vian, no átrio do tribunal, enquanto esperava pelo meu julgamento. E confirmou-se o meu receio. Pode ser inteligente, esta advogada, mas não será, de certeza, grande advogada. Poesia, filosofia e romance são incompatíveis com a advocacia.

Mas não foi isso que me preocupou. Preocupou-me sim o quadro enorme de madeira, com duas peças desniveladas, pintado de um amarelo mortífero.

   Sobre o amarelo mortífero, estava desenhada, a negro, uma Alice de pescoço enorme e fino que chegava ao cimo do quadro, uma Alice sem cabeça e com os pés pequenos encerrada num labirinto.

    Fiquei logo a tremer porque pressenti o pior.

Vendo o meu desespero, a advogada que a Justiça tivera a caridade de me nomear tentou acalmar-me.

   – O senhor foi vítima de uma sucessão lamentável de enganos e azares. A pena de morte há muito que está abolida. A Constituição da República proíbe-a. Mas o procurador entende que devia ser posta novamente em vigor. E, como ele e o juiz são amigos, e o juiz é muito influenciado pelo procurador, engendraram ambos um modo de o condenar à morte. Foi assim: por um lamentável erro, no seu bilhete de identidade está escrito que o senhor nasceu em 30 de junho de 1867, e não em trinta de junho de 1967. Foi por aqui que o procurador pegou. A lei que aboliu a pena de morte data de 1 de julho de 1867, é o Ato Adicional iii. Como, no seu bilhete de identidade, o senhor nasceu a 30 de junho de 1867, o juiz decidiu o seu caso estava sujeito às leis afonsinas, que obrigavam a que no processo penal se aplicasse, no tempo, a lei mais dura para o réu – a lei que deixou de existir no dia seguinte ao que constava no bilhete de identidade como o do seu nascimento.

      O senhor matou – logo, foi-lhe aplicada a pena de morte conforme estipulava a lei vigente no dia em que no seu bilhete de identidade constava que nascera. O senhor esqueceu-se de verificar a sua identidade e os juízes esqueceram-se do tempo. Os tribunais são assim. A Justiça é cega, de pedra, e fica sempre à entrada dos seus palácios. Nos tribunais, as bicicletas andam sobre as formigas.

      No meu corpo começaram a escorrer suores frios. Não pensei na forca, nem na cadeira elétrica, nem numa dose de veneno. O meu pensamento recuou até à guilhotina e, de repente, vi o meu corpo envolvido por um lençol e, ao longe, a cabeça a olhá-lo como se olhasse o nada. Vi depois as formigas aproximarem-se, começarem a entrar-me pelo nariz para me comer os olhos por dentro.

A advogada apercebeu-se que o meu corpo começava a deslizar pela cadeira e estava prestes a desfalecer. Gritou-me de imediato:

– Senhor Silva, senhor Silva, esteja calmo, nada de grave lhe irá acontecer. O senhor foi agredido, o senhor agiu em legítima defesa. A sentença de que foi vítima é uma loucura. O senhor tem de ter confiança em mim. Garanto-lhe que irei conseguir revogar essa sentença. GARANTO-LHE, gritou ela com medo que eu morresse no seu escritório com uma síncope cardíaca. De imediato saltou da sua cadeira e veio abraçar-me. Senti os seus seios no meu rosto, e o seu medo, o seu grito e aquela suavidade dura dos seios no meu rosto fizeram-me recuperar do pânico.

     – Eu vou buscar-lhe um copo de água senhor Silva, tenha calma. Tenha calma e confie em mim.

     Foi a correr buscar-me o copo de água que bebi lentamente enquanto ela me observava com horror e pena. O seu rosto, a memória dos seus seios sobre o meu rosto fizeram nascer em mim o dever de recuperar a calma e demonstrar-lhe a minha confiança. Recuperei a minha postura na cadeira, e tive forças para lhe dizer eu confio em si doutora, confio em si, confio em si. Mas, por favor, faça-me esse recurso depressa. Preciso de me libertar desta peça de teatro cruel o mais depressa possível para continuar a viver.

     Garantiu-me que estava a terminar o recurso e o iria entregar no dia seguinte. Que voltasse ao seu escritorio para me dar uma cópia. Depois de ler as minhas alegações o senhor vai ficar tranquilizado. Senti-me no dever de abandonar o seu escritório para que ela recuperasse totalmente do pânico.

    Fui para o meu pequeno apartamento. Deitei-me na cama depois de ter baixado as persianas e apagado a luz. Fechei os olhos para não sentir o mundo nem a minha própria vida, este acaso, este erro, este absurdo. Queria dormir, não ver, não ouvir, não sentir, não pensar, não sonhar, sobretudo não pensar porque todo o pensamento me conduziria a um beco sem saída que tem sido a minha existência, da qual nem sequer tenho coragem para me livrar.

    Mas não consigo deixar de sonhar. Sonhei que tinha acabado de morrer mas, estranhamente, este sonho não me causou qualquer angústia. Na verdade, eu tinha morrido antes muitas vezes, e a morte em mim já se tornara um velho hábito. Recordo  bem a primeira vez que morri, era eu ainda criança. Morri com o Xico, companheiro de brincadeiras que com quem ia apanhar rãs para alimentar o corvo que o pai aprisionara numa gaiola e dizia olá sempre que me via. O Xico que tinha, como eu, o terror das cobras. Com ele fui sepultado no pequeno caixão cheio de lírios brancos para esconder o odor da morte.

    Desde então, quantas vezes morri com a perda de tantos que amava! 

   Desde muito cedo comecei a sentir indiferença pela vida. Não sou capaz de uma grande obra que perdure. Não sou capaz de provocar um incêndio como Heróstrato. Estou apenas aqui por um enorme acaso e destinado a ser nada num nada no tempo. Só encontro uma explicação para o que senti no momento da minha condenação: eu morria por uma imposição dos que odiavam e não pela partida dos que eu amava.

     No dia seguinte, ao fim da tarde, lá fui ao escritório da advogada. Senti pena dela pois estava mais angustiada do que eu. Recebi o recurso e prometi lê-lo para a tranquilizar, mas sem qualquer intenção de o fazer porque tudo me passou a ser indiferente. Como tinha direito a férias acumuladas decidi usar agora esse direito, não para passear e, como é costume dizer-se, espairecer, mas para me fechar dentro de casa e cortar o meu contacto com o mundo. Depois que morreram os meus avós e os meus pais, depois que morrera a mulher que eu amava, perdi qualquer interesse nas pessoas. Refugiei-me nos pequenos prazeres que a vida me proporcionava ainda – banhar-me no sol, sentir o vento, mergulhar no mar frio, atravessar a cidade no silêncio entre as luzes da noite, e ler, ler porque nas palavras  estampadas a negro sobre o branco alguns seres conseguiram dar algum sentido a este absurdo que é a condição humana de nascer para morrer. Agora só essas palavras simultaneamente tão frágeis e tão fortes me ligavam à vida perante uma ameaça de morte. Viajar com Ulisses e Dante do Inferno até ao Paraíso e, na viagem, sentar-me ao lado do solitário sem nome de Bernardo Soares, ouvir os gritos de Brandão, caminhar entre a indiferença do mundo e a dor do mundo, escutar essa música de câmara que são as vozes íntimas de Kenzaburo Oe, ou a sinfonia triunfal que se ergue das páginas de Guerra e Paz, só isso me dava uma razão para existir.

      Perdera a noção dos dias. Perdera a vontade de me alimentar. Lia agora deitado na minha cama. Parava para dormir, voltava a ler, voltava a dormir, dormir cada vez mais horas. Mas um dia fui acordado pelo telefone que nunca tocava. Do outro lado ouvi uma voz infantil gritar-me de alegria – senhor Silva está livre do seu pesadelo. Ganhámos o recurso, o senhor foi absolvido. Só tive duas palavras para lhe dirigir – obrigado doutora. Não consegui falar-lhe mais porque comecei a ver o seu rosto, a sentir os seus seios suaves deslizarem no meu rosto, e em mim nascer, agora, a esperança.

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

 

 

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