Cultura

Obituário | Rafael Nolli

(ano da peste, 3 de abril de dois mil e vinte e um)

1

Em algum momento
(o nome certo é passado)
Reclamávamos das correntes infindáveis
Das mensagens – tão automáticas – de bom dia
Ignorávamos, dávamos dislike
Protestávamos com efusivos textões
(os tempos eram outros, havia tempo para isso)

Em algum momento
(o nome certo é passado)
Reclamávamos das fotos bonitinhas
– de peixes, de pássaros, de flores, de jardins –
Emolduradas com frases bíblicas
Ou enfeitadas com poemas de péssima qualidade
(os tempos eram outros, havia tempo para isso)

Hoje – não há como chamar de presente –
As fotos postadas vão mudando de cor
(um inverno terrível lentamente se alastrando)
As imagens coloridas – antiga regra
Vão dando lugar a outras tonalidades

Os registros sorridentes – nas fotos de perfil –
Sendo trocadas pela bandeira negra da dor
E só a palavra LUTO prospera entre as postagens

2

“o sofrimento maior
na maioria dos casos
é não poder fazer nada”
– alguém postou hoje, de manhã

E tudo que nos cerca
– em qualquer uma das redes sociais –
É um imenso obituário

3

Riscar a palavra futuro dos dicionários
Como se apaga uma ilha do mapa
(a bomba derradeira, armada ali
em uma de suas mais belas praias)

O que se divisa no horizonte
– daqui de onde falo
até onde a vista alcança –
Tem o cheiro sombrio da morte

E os maus ventos
– que nunca foram tantos –
Não se furtam em propagá-lo

4

Não há casa que ela não tenha sondado
Não há família em que ela não tenha rondado
Não há perfil em que ela não tenha visitado
(mesmo que distante, só de passagem)

Incansável a sua mão, incansável a sua pena
Infinitas as florestas (sombrias) de onde vem o seu papel
Infinitas as usinas (sombrias) de onde vem a sua tinta
Infinitas as fábricas (sombrias) de onde vem os seus livros

Que as pessoas – memento mori –
Que tiveram o nome escrito nessas páginas
Descansem em paz

5

Os aliados da morte
Sorrindo, enchem os pulmões de ar
E cada uma de suas palavras
É uma nova vala que se escava

Os entusiastas da peste
Sorrindo, enchem os pulmões de ar
E cada uma de suas palavras
É uma nova vala que se escava

Os capitães do mato do caos
Sorrindo, enchem os pulmões de ar
E cada uma de suas palavras
É uma nova vala que se escava

(dizer que falam, obviamente
É um erro crasso, uma imprecisão, um exagero:
Urram, mugem, guincham, relincham, zurram)

E cada uma de suas palavras
É uma nova vala que se escava

6

Có có có corvos grasnam
(os aliados da morte)
E cada grasnar có có có corvos
É uma nova cova que se abre

Có có có corvos grasnam
(os entusiastas da peste)
E cada grasnar có có có corvos
É uma nova cova que se abre

Có có có corvos grasnam
(os capitães do mato da morte)
E cada grasnar có có có corvos
É uma nova cova que se abre

7

À sombra circular dos abutres
Descansam, exaustos, os coveiros

 

Quarentena

1

Alguma coisa mudou, nessa cidade
Dessa janela – aberta para o mundo –
Se ouvia os pássaros pela manhã
E a tarde – na hora do rush –
a buzina (klaxon) dos automóveis predominava

Agora, dessa janela – sempre fechada –
(um bunker se tornou esse quarto)
Só se houve, estridente, por todo lado
wiii-wooo-wiii-wooo! wiii-wooo-wiii-wooo!
As sirenes desesperadas das ambulâncias

2

Alguma coisa mudou, nessa cidade
Dessa janela – aberta para o mundo –
Se avistava o sol nascer sobre os telhados
E, à noite, a lua costumava mostrar a cara

Agora, dessa janela – sempre fechada –
A luz (azul/vermelha/azul/vermelha)
Das ambulâncias, abarrotadas
Entra pelas frestas e lambe as paredes do quarto

Constação

cada casa é uma trincheira
que se defende de um inimigo invisível

(talvez seja o vizinho
ou um dos nossos – algo nos diz)

e rua a rua a guerra é perdida
pelo avanço de exército nenhum

 

Fotografia de Rafael Nolli

 

Rafael Nolli é natural de Araxá, MG. Professor, formado em Letras e Geografia. Publicou livros de prosa e poesia, com destaque para Isca (poemas, lançado em 2020) e Gertrude Sabe Tudo (obra infanto-juvenil de 2016).

Em diversas ocasiões fez mediações no projeto Sempre um Papo (entrevistando nomes como Valter Hugo Mãe, Aline Bei, Leila Ferreira, Aroeira). É um dos curadores do Fliaraxá (Festival Literário de Araxá).

 

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