Cultura

Óbice

 

Recebo mensagem em que meu advogado deseja tranquilizar-me, afirma inexistir óbice em meu projeto, posso encaminhar os planos como desejo, não corro perigo. Embora seja relativamente competente em matéria de vocabulário, conheça algumas palavrinhas bem pouco utilizadas, e seja até mesmo alguém chegado ao vernáculo, cuidadoso na medida do possível no uso da sintaxe, amante fervoroso da linguagem correta, observo com estranheza a locução empregada. Imediatamente me lembro de algumas armações, pego-me rindo sozinho, seria algum tipo de brincadeira? Com certeza não. Precisaria ter com o causídico certa intimidade. Careço desse tipo de camaradagem com ele. Certamente usou a rara expressão por ser afeito a ela, ou desejar impressionar-me. Caso tenha sido por hábito, causou-me maior efeito. Como alguém pode utilizar termo tão exótico, até mesmo excêntrico, no linguajar cotidiano? Penso um pouco melhor, pondero… Talvez esteja sendo imodesto. Caso alguém viesse afirmar ser óbice coloquial, ordinário, frequentador corriqueiro dos mais prosaicos diálogos, não teria como argumentar em contrário. Ou nossas pequenas impressões são capazes de criar padrões? A palavra ser pouco conhecida apenas porque me é estranha não quer dizer nada, minha percepção é incapaz de determinar juízo de valor. Poderia ser limitação minha, deficiência de cognição ou mesmo de aprendizagem. Não sou nenhum Houaiss, Aurélio, somente um pobre e limitado cronista.

Recorro ao dicionário, o maior amigo dos escritores. Aprendo o significado jurídico: aquilo que obsta, impede; empecilho, estorvo. Está explicado. Há um significado ligado ao jargão utilizado nas peças do Direito. Como não estou familiarizado com o linguajar dos rábulas, boiei. Nem pedantismo do profissional, nem ignorância minha. Apenas distância entre dois mundos. O do engravatado e o do escritor descalço e de bermudas, já que a pandemia acentuou meu desleixo no vestir. Às vezes perco tempo imaginando como será quando retornar ao uso de sapatos. Meus pés gritam, rebelam-se, só em imaginar o desconforto.

Resolvido o impasse, tendo acrescentado ao meu leque de termos possíveis de serem utilizados uma nova palavra, feliz da vida como sempre acontece nos casos em questão, preparo-me para lascar um óbice na primeira oportunidade. Afinal de contas, se passei pelo desconforto, pela horrível sensação de tropeçar em um obscuro substantivo masculino, torpe palavrinha com apenas cinco letras capaz de colocar-me em apuros, desafiar o intelectual acostumado a ler chusmas e chusmas de frases nos mais eruditos livros, urge descontar o mais rapidamente possível a horrível sensação em algum infeliz. E curtir o prazer de passar para frente a palavra incômoda agora desvendada. Porque assim são as palavras, a gente aprende e quer logo, desde menino, sair usando. Por isso nos deparamos com situações tão engraçadas nas historinhas infantis. A criança ouve uma coisa diferente do original e sai repetindo. Já desejei saber outrora, a razão de serem os três reis magros. E cantando João Gilberto, pedi para não deixarem a mamãe frita ao invés de aflita.

Toca o telefone. Do lado de lá a mocinha deseja que eu escute uma proposta de empréstimo consignado:

– Eu quero estar fazendo uma proposta para o senhor. Posso?

– Sem óbice – respondo.

– Como?

– Não há óbice – insisto.

A ligação cai. 

 

 

Ricardo Ramos Filho, por Jonathan Wilkins.

Ricardo Ramos Filho é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior.  Professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela USP. Ministra cursos e oficinas, trabalha como orientador literário. É cronista do Escritablog e da revista InComunidade.  Presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio proprietário da Ricardo Filho Eventos Literários atua como produtor cultural. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

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