Se queres paz, prepara-te para a guerra 

 

O escritor soviético Vassili Grossman (1905-1964) acompanhou o Exército Vermelho de Stalingrado, local da primeira e heróica vitória da União Soviética na batalha icônica contra os nazistas, entre julho de 1942 e fevereiro de 1943, até Berlim, onde o III Reich seria levado à capitulação na noite de 8 de maio de 1945. Por causa da diferença de fuso horário entre a Alemanha e a Rússia, a história já se esgueirava pela madrugada do dia 9 de maio quando o marechal de campo Wilhelm Keitel (1882-1946), chefe do Alto Comando das Forças Armadas da Alemanha, assinou a rendição incondicional diante de um triunfante Georgui Jukov (1896-1974), generalíssimo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). [Pouco mais de uma semana antes, no dia 30 de abril, o ditador nazista Adolf Hitler (1889-1945) se matara em seu bunker, situado bem perto do local onde hoje fica o Memorial do Holocausto, nas imediações do Reichstag (parlamento) e do Portão de Brandemburgo.]

 

Na manhã que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – alheio à tragédia humana, o Sol volta a nascer por sobre as costas extenuadas da Terra -, Vassili Grossman viu uma cena da qual jamais conseguiria se esquecer: enquanto os soldados soviéticos se abraçavam de alegria e entoavam canções da terra natal reduzida a escombros pela guerra, Grossman discerniu duas crianças no primeiro andar de um edifício sem face – mais uma edificação civil eviscerada pelas bombas dos Aliados [Inglaterra, Estados Unidos e URSS]. Sujos e esfarrapados, os meninos alemães duelavam com espadas de madeira, que, outrora ripas de uma cama, talvez tenham sustentado o sono de seus pais desaparecidos para sempre.  

 

Em seu diário com observações sobre a guerra – isto é, sobre a condição humana em guerra -, Vassili Grossman fez notar que, enquanto a grande guerra dos adultos terminava, os espadachins prémirins prenunciavam a metástase bélica do futuro.  

  Paz?  

 

  Não.  

 

  Armistício. 

 

  Entreguerras. 

  1. 6.000.000 ÷ 1.200 

 

Em maio de 2022, estive no palácio da Justiça, em Nuremberg, cidade situada na Bavária, região sul da Alemanha. Entre 20 de novembro de 1945 e 1 de outubro de 1946, a sala 600 do palácio da Justiça abrigou aqueles que entrariam para a história como os julgamentos de Nuremberg, em meio aos quais tribunais militares formados pelos Aliados julgariam os mais altos mandatários nazistas. (Caso se tratasse de tribunais civis, os juízes precisariam julgar, além dos indizíveis crimes relacionados ao holocausto da comunidade judaica europeia, os crimes de guerra perpetrados pelos próprios vencedores, entre os quais os bombardeios aéreos contra civis alemães. Em meio a tribunais militares, a venda sobre os olhos da Justiça é revertida em mordaça. Os vereditos equivalem ao butim.) 

 

 

Ministro da Propaganda do III Reich entre 1933 e 1945, além de chanceler alemão entre 30 de abril, dia em que Hitler se suicidou ao lado da então recém-esposa Eva Braun (1912-1945), e 1 de maio de 1945, dia de seu próprio suicídio no bunker berlinense, Joseph Goebbels (1897-1945) teria sido condenado à morte por enforcamento na sala 600 de Nuremberg.  

 

Comandante da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã responsável pelos atrozes ataques das Blitzkriege (guerras relâmpago), Hermann Göring (1893-1946) também teria sido condenado à forca, caso seu carcereiro não lhe tivesse fornecido, na calada da noite, uma dose providencial de veneno.  

 

Ministro das Relações Exteriores do III Reich entre 1938 e 1945 e mediador, ao lado de seu congênere soviético Viatcheslav Molotov (1890-1986), do pacto de não-agressão firmado em agosto de 1939 entre Hitler e o ditador soviético Ióssif Stálin (1878-1953), Joachim von Ribbentrop foi condenado à morte por enforcamento. 

 

Em 16 de outubro de 1946, dia de sua execução em Nuremberg, Ribbentrop subiu até o patíbulo e engoliu em seco, uma última vez, quando o executor lhe passou a corda ao redor do pescoço.  Geralmente, os condenados despencavam do patíbulo com um comprimento considerável de corda que se estendia da forca ao nó firme e bojudo atado junto à nuca. Assim, a morte tendia a ocorrer não por asfixia, mas pelo fato de a cervical se partir como um graveto seco pisoteado por um coturno.  

 

Conta-se que o executor de Ribbentrop procedeu de maneira heterodoxa.  

 

A extensão da corda destinada ao alto mandatário nazista foi consideravelmente encurtada.  

 

Após despencar do patíbulo, a cervical de Ribbentrop não se partiu.  

 

Joachim von Ribbentrop levou 20 minutos para morrer asfixiado.  

 

Joachim von Ribbentrop estrebuchou tresloucadamente durante 1.200 segundos antes de ser redimido pela morte.  

 

Se tivesse acompanhado a execução de Ribbentrop em Nuremberg, o oficial da SS Adolf Eichmann (1906-1962), que seria enforcado como o colega nazista em um julgamento realizado em Jerusalém, teria feito um derradeiro cálculo macabro.  

 

À frente do setor IV da SS (Schutzstaffel, Tropa de Segurança), responsável pela logística de deportação dos judeus dos guetos até aos campos de concentração no Leste Europeu, o meticuloso Adolf Eichmann contabilizaria 5.000 judeus assassinados para cada segundo de suplício de Ribbentrop na forca. Ao fim de 1.200 segundos, o burocrata Adolf Eichmann poderia ensinar ao filho em idade escolar, por meio de uma simples multiplicação, que 6.000.000 de seres humanos de ascendência judaica foram assassinados pelo holocausto. [Distante do estereótipo monstruoso que se esperaria de alguém envolvido nas engrenagens do holocausto, a fleuma e a alienação de Eichmann em face das acusações gravíssimas que lhe eram imputadas durante seu julgamento em Jerusalém – “Eu fizera um juramento de lealdade ao Führer e só cumpria o meu dever” – fizeram com que a filósofa alemã de ascendência judaica Hannah Arendt (1906-1975) forjasse a noção de “banalidade do mal” para compreender como é possível beijar a testa da esposa ao sair para o trabalho, remeter milhões de pessoas rumo ao cemitério dos vivos de Auschwitz durante o expediente, tomar uma sopa de cebola com rodelas de linguiça no jantar e dormir com um pijama listrado como o dos prisioneiros dos campos de concentração nazistas.] 

 

III. Hamurabi, cidadão de nossa época 

 

Em face das vítimas inocentes do holocausto, como chegar a uma sentença justa para o genocida Joachim von Ribbentrop?  

 

Querer que ele sofra como suas vítimas inocentes ecoa o próprio ódio nazista. Justiça como justiçamento.  

 

Querer que ele não sofra não faz jus às suas vítimas inocentes. Justiçamento como justiça.  

 

Será por isso que a Justiça amordaça os próprios olhos com uma venda?  

 

Dezoito séculos antes de Cristo, sob o reinado do babilônico Hamurabi, foi implementada a lei de talião, que estabelecia um princípio de reciprocidade entre crime e castigo.  

 

Se um arquiteto projetasse uma casa com fundações frágeis e a edificação ruísse, a casa do arquiteto também viria abaixo.  

 

Se um homem furasse o olho de outro homem com uma adaga, o ofensor também ficaria caolho. 

 

Olho por olho, dente por dente.  

 

A despeito de parecer bárbara e draconiana, a lei de talião foi erigida para estabelecer um equilíbrio entre crime e castigo, de modo que a punição já não pudesse ultrapassar o mal inicialmente cometido.  

 

A influência de talião se fez sentir de maneira tão profunda entre o imaginário, as leis e as práticas dos povos, que o quinto livro judaico do Velho Testamento, o Deuteronômio (Segundo a Lei), reverbera seus princípios no capítulo 19, versículo 21: “O teu olho não perdoará; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”.  

 

Seis séculos depois da escrita do Deuteronômio, o judeu Jesus Cristo foi interpelado pelo apóstolo Pedro: “Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?”. Segundo o evangelista Mateus (capítulo 18, versículo 22), tal foi a resposta de Cristo: “Em verdade, em verdade eu lhe digo: não até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.  

 

Radicalmente contrário à pena de morte, eu não quero que Joachim von Ribbentrop estrebuche durante 20 minutos até morrer. Mas é possível perdoar Joachim von Ribbentrop até 6 milhões de vezes?  

 

O líder político e espiritual indiano Mohandas Karamchand, mais conhecido como Mahatma Gandhi (1869-1948), certa vez sentenciou que, se o olho por olho, dente por dente da lei de talião continuasse a vigorar, a humanidade ficaria inteiramente cega e banguela.  

 

Se 6 milhões de seres humanos inocentes oferecessem a outra face para Joachim von Ribbentrop, o ex-carrasco conseguiria perdoar a si mesmo?  

 

Quando pensamos que, em 2022, o ser humano já conseguiu aterrissar em Marte, lembramo-nos do rei Hamurabi como adultos que se recordam da própria infância. 

 

Quando pensamos nas possibilidades e impossibilidades de perdão, o rei Hamurabi pisca o olho para nós como rematado cidadão de nossa época.  

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber e psicanalista em formação, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor do romance O evangelho segundo talião (nVersos, 2013); do livro de ensaios e aforismos Tiro de misericórdia (nVersos, 2014); da tese Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018); do livro de ficções, crônicas e ensaios Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019); e do romance de formação em diálogos Metamorfoses: os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

 

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