Cultura

O Cu de Clarice | Mário Baggio

Quando tudo terminou, Clarice se virou para o lado e ficou em silêncio, tentando identificar de onde vinha a dor que estava sentindo. Era no cu. O cu de Clarice latejava. Ardia. Intuiu que nos dois dias seguintes teria dificuldade para evacuar. Lembrou-se de que, há algumas semanas, conversara com ele sobre a possibilidade de uma noite qualquer fazerem “sexo selvagem” e, a cada vez que essa ideia lhe vinha à cabeça, surpreendia-se rindo. Era uma ideia divertida, excitante. E agora isso: a dor, o ardor, o incômodo. Minutos atrás, talvez arrependida e antes que tivesse chance de impedi-lo, ele levantou as pernas de Clarice, colocou os calcanhares dela sobre os próprios ombros e enfiou. Não na frente: atrás. Mas pela frente, que é a posição em que os rostos se encontram, é quando se encontram os olhares e não há espaço para nenhum fingimento, só para a verdade. Ele gozou em menos de dois minutos. Ela, um pouco depois.

 

***

 

Você gostou, eu sei, disse ele, deitado de costas, quando terminaram. Eu vi que você gostou, repetiu. E beijou a testa de Clarice com ternura. Saiu da cama dizendo que ia preparar café para os dois. Que café era a bebida que mais combinava com bom sexo. E eles tinham acabado de fazer um sexo ótimo. Clarice permaneceu entre os lençóis. Pequenas manchas vermelhas aqui e ali, como uma pintura infantil, um quadro de Miró.

 

***

 

Há um corpo dentro de outro. Ou o pedaço de um corpo dentro do pedaço de outro corpo. Isso é sexo. É o momento em que os dois atores se calam e procuram realizar a cena da melhor forma possível. Não se diz nada além da verdade. Nas sensações, nas reações, nos olhos, nos arrepios da pele. Até na calculada violência. Fora está o mundo, dentro, um vulcão. Assim é o sexo. Dentro.

 

***

 

A dor no cu não era insuportável, mas se fazia presente. Incomodava. Vai sumir em dois dias. Clarice se lembrou de um artigo que leu numa revista sobre os homens que de forma alguma se deixavam penetrar. Por nada, nem por dedos delgadíssimos. Jamais farão exame de próstata, preferirão a morte à vergonha de terem deixado que algo entrasse em seu orifício sagrado. Existem homens assim. Burros, obtusos, ignorantes. Clarice não entendia essa resistência masculina. Também não entendia a fixação deles em explorar orifícios femininos até então inexplorados.

 

***

 

Não era um tipo desagradável nem desconhecido, esse do “eu vi que você gostou”. Era o sujeito com quem Clarice às vezes dormia, não um estranho que ela tivesse caçado num bar. Já era de casa. Sua escova de dentes estava no armarinho do banheiro e algumas cuecas e meias na gaveta onde ela guardava suas calcinhas. E tinha um cu intocável. Inviolável. Em alguma outra sessão de “sexo selvagem”, Clarice iria propor outro tipo de jogo: ele seria penetrado. Por ela, que usaria algum instrumento. Ela não havia baixado a própria resistência? Por que ele não poderia fazer o mesmo?

 

Não era, de jeito nenhum, um tipo desagradável. Muito menos violento. Fez o que fez com o consentimento de Clarice. E era também um homem capaz de beijar uma mulher na testa com ternura infinita depois da violação, ou da quase violação. Violação não é palavra que se aplique a uma situação como a que acabou de acontecer. Clarice não se sentiu violada porque tinha concordado. Violação, para ela, era quando ele entrava sem bater pela porta do banheiro e a via sentada no vaso, urinando. É preciso evitar a violação das intimidades, assim considerava Clarice. Urinar é ato que se realiza em solidão absoluta. Pelo menos para as mulheres, que precisam se abaixar e abrir as pernas. Outras intimidades podem ser compartilhadas. Urinar, não. 

 

***

 

O homem do “eu vi que você gostou” se aproxima da cama com duas xícaras fumegantes de café. A bebida que revigora, ele repetiu. O corpo desse homem tem cheiro de sangue, sêmen, saliva. Ele fala em prazer. Pronuncia, na mesma frase, as palavras “prazer” e “eu”. Esse homem, minutos atrás, penetrou duplamente em Clarice: usou o pau e os dedos. Na frente, os dedos, atrás, o pau duro e apressado. Para o prazer dele, mas também dela. Ele não dissera e repetira “Eu vi que você gostou”? Então… 

 

Assim era o sexo.

***

 

Clarice disse com todas as letras. Disse que testemunhara o prazer dele, explícito no rosto e no movimento do corpo e dos dedos. Da pélvis dele, das pernas, da boca e da língua. Da mão livre apertando seus seios, ora um, ora outro. Dos dentes dele mordendo seu pescoço. Ele contou que ela provocara o prazer dele ao empinar o quadril para cima e se abrir para recebê-lo. Vê-la assim tão excitada o excitava também.

 

Os dois tomaram o café em golinhos pequenos, sentindo o líquido quente aquecer a garganta e o estômago.

 

***

 

Quando Clarice fecha os olhos na hora do gozo, ela sabe que está vulnerável, completamente entregue e sem nenhuma defesa, como se pulasse de uma grande altura sem rede de proteção. Sabe também que seu parceiro nunca experimentou o próprio prazer como uma entrega, uma caída, uma capitulação. Ele nunca pensa em controle, isso está a cargo do seu pau. O pau em riste: sua arma, sua espada, seu dono.

 

Mas ele sabe que, quando sente que vai gozar e vira os olhos para cima, buscando e encontrando no ar a presença de algo divino, está certo de que mulher nenhuma, nem mesmo Clarice, conhece o Paraíso. Não como ele conhece. Não como seu pau conhece.

 

Há nisso uma certa forma de paz na vida a dois. A mansidão. A suavidade. As diferenças. A ausência de competição.

 

***

 

“Eu vi que você gostou”, ele repetiu e repetiu. E depositou um beijo dulcíssimo na testa de Clarice. Pulou da cama dizendo que ia buscar mais café, talvez uns biscoitos também. A fome depois do sexo. A larica depois do sexo, os dois sabem o que é isso. Café revigora, ele disse.

 

***

 

O cheiro de sangue no quarto. A frase repetida: “Eu vi que você gostou”. O cu machucado. Miró nos lençóis. A dor no cu. Clarice sabe que outras dores virão. A repescagem do prazer. 

***

 

Eu quero te ver outra vez, e outra vez, e outra vez, ele sussurrou no ouvido de Clarice. E outra vez. E outra vez. E mais uma vez.

 

Clarice escutou Eu gostaria de te matar outra vez. E outra vez. E outra vez. E mais uma vez.

 

Ele sorriu e bebeu um grande gole de café. Café é bebida que repõe a energia gasta no esforço. Essa frase é um mantra, pensa Clarice.

 

E ela pensa mais: no seu posicionamento de vida, o corpo é um lugar de batalha. É o espaço da violação, mas também do prazer, da entrega, da capitulação. Miró vem depois. Ela gostou, não podia negar, e ele percebera.

 

Clarice bebe o café e conclui que, ainda que a mulher tenha conquistado várias liberdades culturais e políticas com relação ao seu próprio corpo, a carne está sempre lembrando que há um vínculo entre ela e o espírito, seja por meio do passar do tempo, seja por meio das enfermidades ou da dor. O corpo é espírito feito matéria e nele está essa habilidade monstruosa de agir por conta própria quando, na verdade, o corpo humano é só pele, sangue e secreções. E desejo. Homem ou mulher, tanto faz, é assim para os dois.

 

***

 

Na próxima vez em que combinarem de fazer “sexo selvagem”, Clarice estará devidamente preparada e equipada para atuar na posição inversa. Vai abrir bem as pernas dele, colocar as bolas para cima para que não atrapalhem, e enfiar — nele, no orifício dele, na sagrada auréola, no intocado território masculino. No cu do seu homem. 

 

Depois tomarão várias xícaras de café preparadas por Clarice.

 

Fotografia de Mário Baggio

 

Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog Homem de Palavra, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe e outros contos” (2017) e “Espantos para uso diário” (2019). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura&Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Crônicas Cariocas, Escrita Droide e Subversa. Participou da “Antologia Ruínas”, da Editora Patuá, e da coletânea de poemas “Fragua de Preces”, editada em espanhol. Em 2021 publicou seu 4º livro de contos (“Verás que tudo é mentira”).

 

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