Cultura

O antilirismo lírico de Lopito Feijóo | Paulo Martins

Dos livros de poesia do poeta angolano Lopito Feijóo que me chegaram às mãos, o “Desejos & Doutrinárias Marintimidades” é o que me tocou mais fundo. Descrevo aqui, de forma sucinta, o sentido e a qualidade que encontrei em seus poemas.

 

I

 

De um modo geral, a poesia de Lopito Feijóo parece escrita a machado, riscado em tampos de madeira de lei, com cortes ora profundos ora superficiais, pelo que certamente também são usadas outras ferramentas de diversos calibres, todas simbolicamente fálicas. Já sabia, de outros livros, que na visão deste veterano poeta nossa sociedade de classes não pode ser encarada com delicadeza e amabilidade: ela nos obriga a ser duros, contundentes e um pouco ferozes, por ordem de suas contradições, que nos agridem e engendram nossa revolta. As relações humanas e, no seu bojo, as relações amorosas, são reféns dessa condição. Então, quando a poesia amorosa ou erótica está talhada e pode ser declamada, ela urra como leão, grita como ave de rapina, ameaça como uma hiena; mas tem uma particularidade, aparentemente paradoxal: os poemas acabam num doce enlevo, com as carícias e delicadezas das aves canoras quando em conluio de acasalamento. A ferocidade então se transforma em ternura e o realismo expressionista se converte em lirismo exposto.

 

Lopito Feijóo se declara um poeta doutrinário. Não é à-toa que seu primeiro livro de poemas se chama Doutrina e vários outros são nomes compostos, em que a palavra “doutrina” ou “doutrinário” estão presentes, como a querer destacar esta qualidade vital: tudo na vida decorre de uma doutrina. Ou seja, a existência é doutrinária por natureza. Na verdade, é isso mesmo, pois doutrina é um conceito que implica sabedoria, ciência e erudição; e doutrinar não é mais do que a forma de adquirir tais atributos. Ele escolheu, então, estender a sua criação poética no desvelamento dos misteriosos e multifacéticos meandros doutrinários da vida.

 

Assim também será visto o amor. É preciso cantar a experiência do amor, a sua sabedoria, a própria arte de amar, como a coisa mais sublime da vida. Parece não lhe interessar as declarações de amor pessoal, pelo que sua poesia jamais é dedicada a esta ou aquela mulher particularmente, ou a narrar histórias vividas. A amorosidade que escorre dela não é a que carrega dentro de si para um ente específico: é a que o homem deve desenvolver para tornar a vida uma experiência válida, prazerosa e feliz. Quando ele a extravasa, é no sentido de alcançar o universal. Ele também quer aprender a experiência da mulher, alcançar o amor universal, tornar-se profundo no amor. E por esse caminho parece que deseja nos doutrinar, ou simplesmente nos orientar a ação, fazer com que vivamos a experiência transcendente que nos fará felizes.

 

Esta intenção fica bem explícita no poema Erótica Oração de Eficiência, no qual chega a ser didático, nos conduzindo pelos caminhos do amor:

Antes do interlúdio o prelúdio.

Antes da sufixação a prefixação.

Antes do par o ímpar.

Antes do envolvimento o sentimento.

 

O poema prossegue neste ritmo, traçando um rigoroso ritual, no qual o antes é uma preparação imprescindível, e o depois, uma espécie de liturgia de completude. Enfim, “antes das eróticas relações as conjugais conjugações”; ou seja, “a entrega dos corações” sempre deve preceder as “ações”. 

 

Este cuidado com a relação amorosa e erótica será encontrado em diversos outros poemas, como em Poética & Erótica & Colorida & Florestal, no qual o mantra da poesia anterior se repete ad infinitum, pois essa é a própria dimensão do amor:

 

Clarear uma preta

escurecer uma branca

enaltecer temendo,

uma destemida anca

 

e assim até o fim. São, no dizer da excelente prefaciadora, a poetisa Ana Mafalda Leite, “premissas de uma espécie de manual de sedução, recorrendo uma vez mais o poeta à proposta de ensinamento e utilizando um registro, a que a sua poesia nos habituou, o da lúdica ironia e desconstrução”. Queiramos ou não, somos despertados pelo desejo de “eficiência” “orientação” e “conhecimento” da relação amorosa.

 

Diante do livro de Lopito, talvez devêssemos primeiro perguntar: seria o sexo poetável? Claro, a resposta é sim. Só que não é fácil. Talvez seja um dos temas diante do qual encontraremos os mais difíceis obstáculos, dado os riscos de se cair na vulgaridade. Lopito responde à pergunta na prática de seus próprios versos. Todo o seu livro pretende dar uma resposta a ela de forma até mesmo didática. Na verdade, o sexo só é poetável através do erotismo, com o que deveríamos mudar a pergunta: seria o erotismo poetável? Sim, é Lopito mesmo quem revela, em Onda Fálica, por exemplo:

 

Digitando versos

entre as coxas

do teu alongamento

 

debitando rimas

escorreitas

em teu peito

 

ou em Quase Masturbação:

 

Sonhavas quando

despido em teu corpo

laminei

as falésias d’outras mágoas

 

Sendo assim, abracemos esta leitura com a devida paixão poética e erótica.

 

II

 

O livro se divide em duas partes: Navegando Marintimidades e Desejos de Aminata.

 

A marintimidade do título está presente em ambas as partes. Trata-se de uma palavra inventada, junção de duas outras: marinho (ou marítimo) e intimidade, com o que Lopito idealiza a experiência amorosa dentro nas águas do mar, como se só ali ela se concretizasse para ele. A marintimidade é, portanto, o lado poético e sonhador do poeta ao pensar o amor, algo que só alguém de altos voos imaginativos poderia alcançar. É um vasto passeio visionário pela nudez, como se ela só existisse em estado líquido. No poema Divina & Pornofônica, sente-se levado assim pela parceira:

 

 propões-me maríntimo

viajar no paraíso feito líquido.

 

Em Consagrando o sonho, ainda é mais explícito:

 

Sedento e voraz

resolvi-me

com o suor da tua pele porosa

somente liquefeita para mim.

 

Em outro poema, intitulado Onda Bronzeada, a mulher também aparece explicitamente como ser marinho, uma simples “onda”; já em Navegando na Crista da Onda ela é uma “destemida moreia / na crista da onda / envolta em prazeres”. Aliás, neste último poema o bardo sente-se

 

Navegando nos picos do prazer

Nas horas quentes do prazer

 

Num quarto poema, Despindo-se, retoma o tema com a mesma fluidez das águas:

 

Na praia da minha praia

vislumbra-se

um banho de mar sem roupa.

 

É sempre a nudez e o mar, e o ser amoroso navegando nos dois. Ou seria outra a ilação? Seja como for, tais versos não deixam de representar os líquidos fluxos eróticos da imaginação do poeta.

 

Prosseguindo na sua navegação pelas águas do erotismo, Lopito Feijóo às vezes esgrime versos um tanto rudes, se vistos superficialmente. É por isso que, quando falo que sua poesia parece ser escrita a machado, também me reporto a seu lado animal, aparentemente grosseiro e naturalista, que ele não desiste de externar:

 

Eu, babado envenenado e desnudo

dançando extenso e erótico

viajando intenso e linguarudo.

 

Tu, delirando deitada e afiada

ajeitada e apressada

no compasso da intimidade sonhada.

 

Este conluio, no entanto, acaba sempre em ternura:

 

ofegantes siameses no chão

unidos pelo kuduro e pelo coração.

 

No poema Maiúsculas Intimidades a mesma imagem se repete. É preciso preludiar a ambientação do amor:

 

Magnifica os sentidos do toque

na densa pele da pedra que toco

no mundo das florestas animais.

 

Mas é nesse espaço que

 

Pontifica nos seios dum peito

angelical induzindo a loucura

dos acessos faróis encantatórios.

 

O sexo tem, incontestavelmente, seu lado animal, e o poeta sabe disso e não o esconde. É meio antropofágico, e o revela. No poema Gestos, do começo do livro, já vislumbra o seu lado canibal:

 

Na areia da praia contigo

deitar-se fantasiado de eterno

antropófago por demais assediado.

 

Na segunda parte do livro, esta fantasia persiste, como no poema Para uma Noite Feliz:

 

Falo do falo do fogo das falas

Da fonte do divino

Do sémen morninho e do próprio canibal.

 

Nesse contexto animalesco, a mulher pode adquirir várias denominações: “onda”, “sereia”, “moreia” e mesmo “lontra”, sempre relacionadas ao mar.

 

Há que se notar, ao lado dessa dinâmica animalesca, desse fundo de convívio louco e terno ao mesmo tempo ao qual o poeta se entrega com paixão, a presença de um linguajar aparentemente grosseiro, mas na verdade franco, explícito, sem rodeios. Por natureza, o sexo é obsceno. Não se pode falar dele somente com palavras doces. No poema Conjunção Carnal ele já alerta:

 

A prática das carnes envolve

alguma espiritual ferocidade.

 

Já no poema Sensualmente Nós, nos apanha desprevenido:

 

…são válidos todos os gestos

na hora de procriar.

 

Daí o vocabulário poético de Lopito descambar muitas vezes para o cru, o óbvio, mas um óbvio que não perde a sensualidade. Pode ser que alguém se espante diante de versos como “…na mão o furor da masturbação”; ou rejeite palavras ou formulações que, no fundo, têm papel insubstituível no contexto de seus versos: “falo” (usado em diversos poemas), “genitália”, “porra”, “caralho”, “tesão””, ”fornicada emoção”, “papaias defloradas”, “viscosa desgraça carnal”, “bicéfalos andando libidinosos”, “desgraça carnal”, “pecado genital”, (desconstrução irônica em que emerge o verdadeiro nome do lendário ‘pecado original’), “hasta púdica” (ironizando o hasta pública), “fálica cumplicidade”, “triângulo viperino”, “lavoura carnal”, “envaidecida qual caralho vermelho e teso”, “vagina sempre erecta” e outras tantas.

 

Este linguajar sem rodeios aparece até nos títulos dos poemas: Quase Masturbação, Concerto Com Genitália, Erótica Oração de Eficiência, Retocada Missa Hormonal, Divina & Pornofônica, Onda Fálica, Húmida Lavra, Pecado Genial ou Recado Genital.

 

Só que ao lado dessa linguagem aparentemente vulgar, não podemos perder de vista que o poeta contrapõe outra linguagem, onde se ressalta um lírico e afetuoso tom amoroso, já que o animal é “a fera que não fere”. Em Para uma Noite Feliz, diz:

 

Entregue a fera que não fere

sou fênix engalanado na vulva da virgem

harmonizando segredos de tanto musgo

para neste natal se for cabal,

em paz, adormecer-te ao som de NOITE FELIZ!

 

E assim, vamos encontrar, no desenrolar do livro, versos que exaltam a mulher e seu papel amoroso fundamental na vida do homem, a aliviadora de todo o seu sofrimento, como em Desígnios de Mulher:

 

Quantos dias de mais prolongados?

Quantas luas sacrificadas?

Quantos cantos indesejados?

Quantas noites tão bem malamadas?

 

Quantos prantos descarregados?

Quantas estâncias palmilhadas?

Quantos sorrisos afunilados?

Quantas oferendas ao bem-amado?

 

E outros versos belíssimos, dignos da melhor poesia lírica de nosso tempo, afluem aqui e ali, fazendo um contraponto com os versos fesceninos, como estes de Inútil Correspondência:

 

Um pombo correio beija

minhas pálpebras e descobre

um inabitado coração. (…)

 

Ou este de Canção Para…:

 

Intimidade

é saudade a todo instante

 

Que extraordinária e comovente beleza!

 

III

 

 Paralelamente, Lopito cria suas próprias regras criativas, através da invenção, decomposição ou agrupamento de palavras e outros artifícios vernáculos, técnicas que já vinha utilizando em poemas de livros anteriores.  Já vimos isso ao abordarmos a palavra “marintimidade”. Com o prefixo “porno”, bem apropriado à temática do livro, ele cria diversos sucedâneos, como “pornofônico” e “pornofálico”. E com os advérbios em “mente” costuma brincar à vontade, ora injetando um duplo sentido no verso, ora buscando, na simples decomposição, uma melhor sonoridade, ou uma simples surpresa léxica. Como “mente” é terceira pessoa do indicativo do verbo mentir, um advérbio terminado em “mente”, decomposto, leva a duas hipóteses. Imaginemos esta frase: “aquela que é verdadeiramente…” Se decompormos a última palavra, colocando uma vírgula no verdadeira, (“aquela que é verdadeira, mente”), criamos um paradoxo. Sem a vírgula, a frase fica incompleta. No entanto, se ela é alusiva a uma palavra anterior, ela se completa e adquire duplo sentido. É o que acontece com todos os versos de Juramento Inicial. Vamos a um exemplo:

 

Fanático. I Admirar-te permanente mente

 

Admirar permanentemente é fanatismo. Portanto, o fanático mente. Daí que “admirar fanaticamente” não passaria de uma força de expressão poética, sem nenhuma submissão ao conceitual. Assim, todos os versos de Juramento Inicial e de Juramento Final repetem o artifício, oferecendo-nos um buquê de surpresas. O que vai diferir os dois juramentos são as palavras de abertura de cada verso, em número de dez, talvez uma alusão aos dez mandamentos, que delinearão uma determinada consequência. No primeiro poema, temos: “fanático”, “boquiaberto”, “louco”, sensível”, “carinhoso”, “educativo”, “possessivo”, “domante”, “bendito” e “diverso”; no segundo: “romântico”, “artístico”, “concertado”, “esclarecido”, “encarecido”, “faminto”, “atrevido”, “deslumbrado” e “imaginário”. Os dois poemas se entrelaçam. No primeiro, se bem percebermos, o poeta alude às mentiras do amor, oferecendo à amada sempre o exagerado ou o impossível (nada mais poético do que isso em se falando do amor), como no verso

 

Domante. I Possuir-te intemporal mente

 

No segundo poema, o poeta descobre as facilidades e mentiras do juramento inicial e penetra num romantismo onde tudo é imaginário:

 

Romântico. I Cultivar-te poética mente

(…)

Esclarecido. I Desejar-te humilde mente

(…)

Imaginário. I Devorar-te mental mente

 

O juramento final é um desdobramento do juramento inicial. Isto fica claro no desfecho dos dois: No primeiro o poeta diz:

 

EU CAVALGANDO-TE ALEGREMENTE

SOMENTE APARENTE MENTE DEMENTE

 

No segundo conclui:

 

TRITURAR-TE FISICAMENTE NA TERRA

E EM MARTE AMAR-TE ETERNAMENTE!

 

Observe-se que o último advérbio do poema, eternamente, já não é decomposto. É como se pela primeira vez o poeta estivesse a dizer a verdade. Mas com a força de um verso cheio de sonoridades e de aliterações: “na terra e em marte amar-te eternamente”.

 

Para finalizar, lembremos que a segunda parte do livro, Desejos de Aminata, é uma espécie de desfecho da “doutrina amorosa” de Lopito Feijóo. Se devemos amar profunda e eternamente, seria de se perguntar: mas quem? Pode não ser Maria nem Joana nem Luanda, mas terá que ser uma Aminata. É o sonho de todos: alguém especial; alguém perfeito. O amor sai do seu anonimato e passa a ter um nome, um ser que o personifica, a Aminata, que congregará a beleza, o encantamento, o erotismo, o prazer, a amorosidade, o gozo total. Assim é que os quarenta poemas de Desejos de Aminata se transformam num “hino amoroso”, na arguta visão da prefaciadora, em que se destaca, do começo ao fim, a perfeita sintonia entre os dois amantes. Hino, samba, sinfonia, kuduro, seja o que for, a música toma posse do amor e ele se faz divino.

 

PAULO MARTINS, escritor

Lisboa, 23 de fevereiro de 2022

 

 

Nascido em Ipiaú, na Bahia, Paulo Martins passou quase que a vida inteira viajando: tendo morado em Jequié, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Pequim, Paris, Salvador, Porto Seguro e outras cidades. Reside atualmente em Lisboa, Portugal, onde se dedica a escrever e a desbravar novos países, além dos mais de 30 que já conhece. É poeta, letrista de canção popular, romancista, cronista e ensaísta, autor dos romances Glória Partida ao Meio (7 Letras 2010); Adeus, Fernando Pessoa (7 Letras, 2014); História de Roque Bragantim – Olhares do Campo (Cultura Editorial, 2017); e do ensaio biográfico Jacques Brel – A Magia da Canção Popular (7 Letras, 1998), entre outras publicações. Divide-se, desde a adolescência, entre as duas maiores paixões de sua vida: a política e a literatura.

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