Cultura

Nosso protetor

 

Eu me batia no lugar mais inóspito que conhecia: o meu próprio ser. Sim, eu falo direto, sem rodeios, porque, quando se quer entender e superar, é preciso enfrentar. E isso, inconscientemente, se tornara um projeto de vida. Era como se eu juntasse qualquer flagelo e tomasse como meu, na minha casa, principalmente. O pranto de minha mãe era o meu; não aguentava que sofresse na mão de seu ninguém. O Demétrio, pai da minha irmã caçula, coabitou apenas os dois primeiros anos de vida da pequena. Felizmente, ele se foi. Não que eu me vanglorie disso, de ser a cruz ou o fim do calvário de minha mãe, mas fui capaz, com apenas dez anos, de varrer o vagabundo de nossa casa; da casa de minha mãe, a casa que ela herdou de meu avô Luiz. Tornara-se corriqueiro, naqueles tempos, o sujeito entrar em casa, cheio de cachaça, e destruir tudo que estivesse à sua frente – foram, nesse curto período, mesa, cadeira, fogão, geladeira, móveis, pratos e copos. Ainda assim, coisa que não entendia, minha mãe chorava e chorava por dias, pronunciando o seu nome; suplicando aos céus que ele não fosse embora. E eu, menino, tentava iluminar a cabecinha inocente de minha mãe. Dizia que poderíamos viver muito bem sem ele; que, se fosse necessário, sairia pelas ruas vendendo os quitutes que tão bem ela preparava. Ela era resistente, agarrada ao lema de ter uma família, de ter por perto o pai de sua filha mais nova; que a figura de um homem em casa seria importante para a segurança e, mais, para servir de exemplo aos filhos – “o homem da casa”, ela decerto pensava. E eu, aos poucos, fui incutindo a ideia de que nada do que ele nos apresentava valia; ele era o próprio demônio encarnado; como poderia servir de exemplo a quem quer que seja? Não tomei uma atitude de imediato, precisava da anuência dela. Então, numa quinta nublada, o carrasco chegou excessivamente alterado, parecia outra pessoa; levava consigo o peso do mal. E foi esse o dia em que ele bateu em minha mãe, sem ver nem para quê. A coitada já sabia e, nas vindas dele, se escondia, ou fingia estar fazendo alguma coisa no banheiro. Desta feita, ele a pegou desprevenida, enquanto trocava a fralda de minha irmã. Elas riam, brincando de “Achou!”; e minha menininha se mexia querendo sair, para pinotear na cama. Ele deu um tapa de mão fechada na orelha direita de minha mãe e ela caiu tesa, apagada: um nocaute. Eu desci desesperado aos seus pés; e meu irmão, perturbado, sem saber o que fazer, começou a bater a cabeça na parede e a arrancar os cabelos. Depois do grave acidente, o vagabundo revirou tudo no guarda-roupas, vasculhou, vasculhou, até achar um mirrado dinheiro escondido. Levou as economias de minha mãe. Demorou para ela recobrar os sentidos e, quando abriu os olhos, me beijou e chorou, pedindo que eu a ajudasse. No meu íntimo, pensei: “Claro! Essa é a palavra-chave que eu esperava”. Balancei a cabeça em sinal positivo. Disse que iria à rua para tentar arranjar um trocado, para comprar o básico; para termos o de-comer do dia. Entrei no ônibus e fui a um dos bairros nobres da cidade. Pedi de porta em porta. Vários “nãos”, e alguns “sins”. Com esses “sins”, recolhi três pacotes de arroz, dois de feijão, um de farinha e outro de café. Já daria, pelo menos, para a semana, intuí. Voltei rapidinho para casa. Mas, antes, passei no barraco do meu amigo Décio; um gigante, que me conhece desde pequenininho. Era, também, amigo de infância do meu pai, falecido num acidente de carro, quando, numa viagem a trabalho, arrebentou a caminhonete da firma numa mureta de contenção. Dizem que ele dormiu ao volante. Ele trabalhava muito. Apesar de ser, à época, muito novo, lembro-me da paz reinante, e da fartura, quando ele estava em casa. Voltando ao Décio: relatei o ocorrido nos mínimos detalhes. Ele me questionou: “Por que dona Francisca e você não me falaram isso antes?”. Eu não soube responder. Falei o que percebia, que minha mãe o amava e que achava que o cretino mudaria. Décio era todo ira, vermelho de sangue vivo, com as veias saltadas, inclusive da parte branca dos olhos. Ele me garantiu: “Vou dar um jeito nisso!”; e deu um murro na mesa, que me assustou. Eu tinha certeza de que Décio Marreta resolveria a situação, porque os maus feitos da comunidade eram levados ao seu conhecimento e, daí, passados uns dias, quem quer que fosse o espezinhador, sumia. Voltei para casa, de certa forma aliviado. Achava, ingênuo, que Décio, nesse mesmo dia, mandaria o cabra se lascar para outras bandas. Errei na previsão. O canalha voltou. Entrou em casa, sem falar com ninguém, tomou banho, comeu da nossa comida, reclamando, e depois foi ao leito, dizendo que não queria ouvir um pio. Mãe gelava de medo. Levou-nos para a rua e ficamos perambulando. Décio estava longe, nos viu, e veio se aproximando, cauteloso. Perguntou a minha mãe o que estava acontecendo, porque a via muito amuada. Ela tentou desconversar, contudo, logo em seguida, desandou a chorar convulsiva, sendo amparada pelos fortes braços do meu amigo Marreta. Ela não disse palavra. Não precisava; estava tudo dito nos seus olhos e gestos. Décio declarou que prontamente esse caso seria encerrado. Mãe arregalou os olhos, decifrando o mandamento nas entrelinhas. O todo-poderoso saiu à rua, ainda se espreguiçando; descansado, pronto para outra. Mandou que entrássemos em casa. Fomos e esperamos a solução. Mãe andava de um lado para o outro, nervosa, roendo as unhas, esquecendo-se, até, de nossa presença. O dia terminou numa calmaria sem igual, não sentida há tempos. Correram dois, três, quatro, cinco dias, e a notícia estampada no jornal: “Um corpo, identificado como de um ex-PM, suposto miliciano, foi encontrado esquartejado numa mala no lixão”. Pensei: nunca vão pegar o Marreta; ele é safo que nem rato na fuga. Na semana seguinte, encontrei o meu amigo num bar da Rua Dois. Ele me chamou para me dar um abraço. Coçou a minha cabeça com o punho fechado. “Bom menino… Estude e seja um homem bom para a sua mãe”. Não tomei isso como um decreto; não fiquei com medo. Ponderei que Décio, o melhor amigo de meu pai, seria para sempre o nosso protetor.

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista “Samizdat”. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

 

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