Cultura

No sonho somos todos génios

Há um sentido estético em tudo o que nos atrai e em tudo o que nos repele. Há uma atracção pelo desconhecido porque há em si uma estética da curiosidade. Pelo novo que nos provoca novas sensações. Por isso, somos atraídos pelo Oriente e pelos mitos modernos sustentados na sua estética ritualística, da mesma forma que somos levados a espreitar as múltiplas configurações religiosas pela sua beleza plástica, mas também pela estética que o mistério eventualmente encerra. Da mesma maneira, o Oriente fascina-se pelas rupturas modernistas do Ocidente como se a sua história fosse um zapping de acontecimentos. Criamos palcos de desejos num interminável teatro de imaginações.

Deslumbramo-nos no sonho porque nas suas atmosferas somos todos geniais. Akira Kurosawa assim o afirmava. Será o sonho um espaço virtual de uma estética impossível? O cineasta japonês reproduziu os seus próprios sonhos para se entender com o mistério da beleza enquanto criação, questionando-se acerca da condição humana e dos seus enigmas. Escolhi entre os sonhos de Kurosawa aquele que reflecte o seu fascínio pela obra de Van Gogh a partir do quadro Corvos.

“No sonho somos todos génios”

 

 No sonho há um intervalo no tempo ou um buraco negro que sendo luz ilumina o medo de nos conhecermos. Mas quem é «testemunha da sua própria busca»1, como disse Maurice Merleau-Ponty em Elogio da Filosofia, «isto é, da sua desordem interior, não pode de modo algum sentir-se herdeiro dos homens perfeitos»2. Perante a paisagem surpreendente do sonho, o tempo deixa de ter os seus valores de lucidez e passa a estar de acordo com as dimensões de um outro espaço, o espaço onírico. Espaço que pode ser esclarecedor, destruidor, intuitivo ou imagético, sendo sobretudo o lugar do mistério onde o tempo não se relaciona comigo mas com o meu desejo indizível de entrar num quadro de Van Gogh e lhe descobrir o segredo da sua existência. É nesse buraco que Kurosawa parece entrar, único espaço possível para dialogar, dentro do seu espanto, com a simplicidade da acção protagonizada pelo génio holandês. 

Se filosoficamente isto está certo ou errado é, aqui, pouco importante. Exactamente porque a filosofia não é só a revelação de uma questão mas também a sua colocação. E reflectir o desconhecido, o inacessível e mesmo o aparentemente impossível, torna-se no eterno passeio do filósofo ou pelas ruas da amargura ou pelas avenidas iluminadas por gigantescos candeeiros com a forma dramaticamente divertida de um ponto de interrogação. É nessa interioridade, segundo Merleau-Ponty, «que o eu pode ser transcendido»3

No espaço onírico, nessa profunda intimidade do sono, relacionamo-nos clandestinamente com aquilo que de mais obscuro nos é, nos pertence. Merleau-Ponty afirma que «o saber absoluto do filósofo é a percepção»4, mas também o é do artista. E sendo aisthésis a faculdade de sentir, a percepção pelos sentidos, Kurosawa transfere a estética do sonho para a sensação de belo que o ecrã nos proporciona. E as imagens importadas do ambiente onírico trazem em si uma verdade, um conhecimento de si, como se a epistemologia passasse a figurar não só no quadro da competência filosófica, mas também na tecnologia ao serviço da arte, como sugere Daniel Boorstin em Os Criadores. Uma História dos Heróis da Imaginação.5

Ser tudo de todas as maneiras foi um projecto estético-filosófico de Fernando Pessoa. Mas é só no sonho, onde todos somos esteticamente geniais, que podemos ser tudo de todas as maneiras. Somos génios, deuses e diabos, mas onde somos igualmente ninguém, seres anónimos numa ambiência onírica de um universo estético deslumbrante. Em Kurosawa, a estética da criação cinematográfica neste filme aparece como protoplasma, como matéria viva, do seu sonho. O sonho como espaço criador de ambientes que poderão mitigar ou mitificar os nossos desejos mais obscuros. Sonhar é aqui filosofar como descoberta do sentido primeiro do ser e se, como diz novamente Merleau-Ponty, «não é possível filosofar abandonando a situação humana»6, também não é possível sonhar sem o homem como centro. Kurosawa faz coexistir na dimensão humana sonho e arte. 

 

 

Se o pensamento organiza a intuição e a filosofia o pensamento, o sonho é tão só uma bomba atómica no conjunto total da intuição, ou seja, destrói qualquer possibilidade de ser organizado a não ser em correlações simbólicas que poderão para uns querer dizer uma coisa e para outros outra coisa, conforme o auto-retrato que cada um queira fazer de si próprio.

 É através do sentido estético que Kurosawa organiza as linguagens do seu universo onírico. Mas conhecerá ele essas linguagens para as organizar? Ou apenas as organiza a partir do vislumbre que ele esteticamente interpreta, deixando ao espectador a livre exegese do seu sonho? Mas o espectador, levado pela sua imobilidade, perde-se no deslumbramento que a interpretação estética do artista fez do seu próprio sonho. 

Regressa ao sonho como uma demanda, como uma procura, questionando o lugar da estética num mundo mecanizado pelas normas inconsequentes de um liberalismo económico putrefacto. 

O sonho, neste conjunto de histórias sonhadas por Kurosawa, aparece como se fosse uma filosofia do caos, não o caos como ciência, mas sim como percepção e conhecimento da desorganização mental que pode provocar quer pela sua desestabilização ética quer pelo seu deslumbramento estético. O sonho faz-nos testemunhas, no ambiente onírico, das potencialidades geniais que residem em nós e quando é transferido para a lucidez torna-se um estímulo e este em fé, em crença, entreabrindo uma porta onde se possa realizar a descoberta com a qual se sonhou. Mas também a pode fechar por uma consciência de medo que nos torna incapazes de nos superarmos no real como o fizemos com toda a naturalidade no sonho. O sonho é o nosso próprio universo porque nada existe fora dele. Mas não é um lugar de verdade ou de mentira. O que será, então? Provavelmente será a busca de ambas na vertigem do abismo onírico. 

No sonho de Kurosawa não está o mundo preciso e real, mas apenas fragmentos que a estética onírica transmuta no que resulta ser o desejo do cineasta. É no sonho que o desejo estético é real numa concepção artística genial. 

O sonho arquitecta-se com elementos estéticos do desejo ou com elementos estéticos do medo, uns apontam para a beleza ideal outros para o temor da fealdade. 

Estético é tudo o que cada um considera estético dentro de si, dentro do seu sonho. É possível que eu no sonho seja testemunha e aderente de uma estética que renuncie na realidade real, na lucidez do real? É provável. No sonho poderei estar no futuro das minhas emoções estéticas. 

O artista que deixa a residência do sonho e transfere, por representação, o objecto de arte onírico para um objecto vivenciado no tempo está a colocar a estética do sonho ao serviço da estética da arte, enquanto objecto representado. O artista no sonho executa e consome ao mesmo tempo o objecto de arte onírico, mas quando o transfere apenas o executa para que outros o consumam. No sonho, o criador é o primeiro espectador da obra concluída no ambiente onírico, mas quando o transfere deste espaço para o lugar do seu estúdio é espectador não de um objecto acabado, mas do resultado de cada gesto que o vai finalizar. No sonho, a obra é apresentada em todo o seu esplendor estético sem exprimir o tempo da sua execução, mas no transporte para o real o artista parte das formas amorfas, da pedra bruta, para o trabalho de «reconstrução», no real, da peça de arte onírica, cuja existência só passará a ser no momento em que se conclua na oficina do seu criador. É neste espaço que a intervenção do artista, a sua manipulação, lhe fornece uma outra estética, que não a onírica, com a qual assina a sua obra. É neste movimento que o artista se reconhece como criador de ambientes estéticos, quando ele próprio manipula a sua expressão. 

Em Kurosawa há uma narração temporal de factos, mas tudo se passa no meta-tempo onírico, o filme é apenas a narrativa, impossível na sua praticabilidade, da realidade onírica, cuja materialização foi possível através de efeitos de ilusão, os efeitos especiais, compatíveis com a linguagem própria dos sonhos. Por isso, um homem do século XX passeia, descobrindo, dentro dos quadros de Van Gogh, chegando mesmo a dialogar com ele, os efeitos estéticos que a arte do génio holandês provoca nele. O sonho proporciona, assim, ao artista a vivência de um sempre presente, seja em que época for ou em que evento se realiza. Kurosawa passa do presente ao passado, sem que o seu protagonista deixe de viver o seu presente. A partir das obras de Van Gogh, o cineasta cria a sua estética tridimensional que, aliada à gramática do cinema, nos proporciona um objecto estético original e deslumbrante. 

Há uma religião do sonho (entendendo religião como algo que nos religa ao ser divino que somos e, por isso, criadores) e como todas as religiões sustentam a sua comunicação sedutora através da estética dos rituais, também encontramos no ambiente onírico a sedução estética que nos emociona, nos perturba e nos faz acordar. 

Kurosawa mimetiza o sonho? Vai refazê-lo no plano do real? Ao construir este filme ele está a dizer o que já lhe foi dito por si mesmo numa outra dimensão? Ou apenas a criar um objecto de arte original? Ele assume que são sonhos, o próprio título aponta para isso nas traduções ocidentais, ainda que em japonês possa ser entendido como visões ou como delírios. «Sonhos de Kurosawa» e não «Sonhos» por Akira Kurosawa. É interessante verificar a distinção que o próprio realizador faz do título da autoria: «Sonhos de Kurosawa», realização de Akira Kurosawa. 

No caminho incessante do criador o homem sonha o objecto artístico que pré-acontece. Mas em que tempo? 

«Se Kant tem razão», como nos diz Umberto Eco em Sobre os Espelhos e Outros Sentidos, «não há percepção e categorização que não se enquadrem nas intuições puras do espaço e do tempo. Será, pois, justo que toda a estética e teoria das artes se interrogue sobre o papel que desempenha o tempo na nossa abordagem de uma obra de arte. Mas se Kant tem razão, toda a obra de arte, sendo objecto de percepção, instaura uma relação particular com o tempo»7.

 Em que medida o artista se relaciona com o tempo e o espaço onírico? Tê-lo-á feito Kurosawa? Umberto Eco parece responder: «o artista deverá transformar o evento numa espécie de representação teatral e esta numa espécie de qualquer registo. Este registo, que de alguma maneira deverá concretizar-se num objecto físico, representará para todos os efeitos a obra de arte e, como tal, será um objecto entregue ao consumo temporal»8.

 Haverá uma celebração litúrgica no templo onírico? Será que o artista enquanto sonha interroga o que se lhe apresenta desde logo como obra de arte? Esta questão parece-me pertinente, uma vez que no sonho ele é executor e espectador a um tempo. Ou a eterna interrogação é pensada somente no tempo real do seu estúdio? Mas que filosofia há no sonho do cineasta? Não sabemos. O que podemos intuir é que Kurosawa tenta fazer passar um conhecimento estético, cujo entendimento só terá sido possível durante o tempo onírico. Será então a estética fílmica uma semelhança da estética revelada durante o sonho? E, assim, levantam-se três questões mais, para as quais não tenho resposta: o sonho manipula o sentido do gosto do artista? Ou o artista serve-se da estética do sonho e coloca-a ao serviço do seu gosto? Será o seu olhar estético alterado pelas emoções misteriosas que o próprio sonho encerra? 

Merleau-Ponty afirma em O Olho e o Espírito que «pensar é experimentar, operar, transformar»9. E para Kurosawa sonhar seria experimentar, sentir a posteriori a matriz da obra de arte revelada? Se Kurosawa não se propusesse manipular o sonho fora dele, o espectador nunca poderia apreciar a obra de arte que realizou com este filme. E manipular é interferir, é mudar, é interrogar, mas também é, particularmente nesta obra, dar lugar ao sonho do espectador. 

 

Kurosawa, como Cézanne, participava do mundo escondendo-se dele, observando-o à distância a partir de uma leitura fracturante com as regras impostas. Expunha-se ao mundo através dos seus filmes, mas vivia escondido no seu silêncio como se ele o depurasse após a conclusão de cada obra e o deixasse em estado de pureza para receber do templo onírico a revelação de uma nova matriz que se plasmasse em arte cinematográfica. 

Como diz Merleau-Ponty, ainda em O Olho e o Espírito, «o pintor é o único a ter o direito de olhar sobre todas as coisas sem nenhum dever de apreciação»10, mas também o cineasta, ele não opina, antes cria a partir de algo que depurado lhe vem das entranhas do olhar. 

Os sonhos de Kurosawa também poderão ser delírios ou, melhor, visões, já que assim se poderia traduzir do japonês, e, neste sentido, sublinhamos o que o filósofo francês diz na obra acima citada: «Digo de uma coisa que ela é movida, mas o meu corpo, ele, move-se, o meu movimento desdobra-se. Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, resplandece em si… O enigma consiste em que o meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível»11. Ele olha-se e como tal reconhece o caminho que o leva à realização da obra, faz com que a visão aconteça. «Ele vê-se, vendo»12 e mostra. Exibe-se, exibindo os seus próprios sonhos que só ele poderia sonhar, as visões que só ele poderia ter, numa celebração da imagem. Se o pintor, segundo Merleau-Ponty «pratica uma teoria mágica da visão»13, também o cineasta pinta, neste caso, em movimento o que a magia do sonho (visão) lhe proporcionou. Se o papel do poeta é escrever o que pensa e o pintor «cercar e projectar o que nele se vê»14, o de Kurosawa é exteriorizar através do movimento. Se Klee sentia em certos dias que eram as árvores que o olhavam e que lhe falavam, em Akira Kurosawa, através da sua visão, é o quadro de Van Gogh que o convida a entrar e a descobrir nele o que só o tempo e o espaço onírico possibilita, ou seja, o que está para além da obra pictórica, o seu interior, os seus recantos, as suas esquinas, as suas depressões. 

Kurosawa pré-estabelece, assim, o mundo virtual, como matéria artística, o acesso ao inacessível e que viria a verificar-se anos mais tarde com a realização de visitas guiadas, sem sair de casa, aos principais museus do mundo através da possibilidade que a informática veio acrescentar ao admirável mundo novo das tecnologias em expansão. Kurosawa proporciona-nos uma visita guiada ao seu sonho (obra de arte) e no seu universo onírico outra viagem (visita) se desenrola no interior inacessível do quadro. O interior da obra do génio holandês é o seu interior onírico revelado ao cineasta no seu delírio. A partir de uma inexistência, de uma impossibilidade, ele torna a existência possível, enquanto obra de arte cinematográfica, e nessa possibilidade nós participamos como espectadores em movimento, levados pelos olhos da câmara, dentro do que seria antes um impedimento físico. Ele quis revelar-nos o seu próprio enigma enquanto criador através de uma busca metafórica. Ao penetrar no quadro Corvos de Van Gogh, Kurosawa manifesta o seu desejo de ir cada vez mais além na construção poética da sua arte cinematográfica, metaforizando o seu destino como artista nunca acomodado à reprodução do previsível. 

 

Notas

1 Maurice Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, p. 9, Guimarães editores, 2ª edição, 1979, Lisboa.  

2 Op. cit., p. 9.

3 Op. cit., p. 13.

4 Op. cit., p. 24.

5 Daniel Boorstin, Os Criadores. Uma História dos Heróis da Imaginação, Gradiva, 1993, Lisboa.

6 Op. cit., p. 24.   

7 Umberto Eco, Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, p. 133, Difel, 1989, Lisboa.

8 Op. cit., p. 135.

9 Maurice Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, p. 14, Veja, 6ª edição, 2006, Lisboa.

10 Op. cit., p. 16.

11 Op. cit., p. 20. 

12 Op. cit., p. 21.

13 Op. cit., p. 27.

14 Citação de Charbonnier, Le monologue du peintre, Paris, 1959, em Op. cit., p. 29.

 

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Bibliografia

 

Benedetto Croce, Breviário de Estética, trad. José Serra, Edições 70, 2008, Lisboa.

Charles Tesson, O Livro de Akira Kurosawa, trad. Mário Júnior e Joana Rêgo, Cahiers du Cinema para o Jornal Público, 2008, Lisboa. 

Dabney Towsend, Introdução à Estética, trad. Paula Mourão, Edições 70, 2002. 

Daniel J. Boorstin, Os Criadores. Uma História dos Heróis da Imaginação, trad. Ana Isabel Afonso, Fernanda Pinto Rodrigues, Jorge Lima, Maria Carvalho, Maria do Carmo Figueira, Maria Goês, Paula Marques, Rogério de Meneses e Rui Elias, Gradiva, 1993. 

Denis Huisman, A Estética, trad. Gabinete Edições 70, Edições 70, 2008, Lisboa. 

Maurice Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, trad. António Braz Teixeira, Guimarães Editores, 1979, Lisboa. 

Maurice Merleau-Ponty, O Olho e o Espírito, trad. Luís Manuel Bernardo, Vega, 6ª edição, 2006, Lisboa. 

Umberto Eco, Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, trad. Helena Domingos e João Furtado, Difel, 1989, Lisboa.

 

fotografia de Luís Filipe Sarmento. Autor: José Lorvão

Luís Filipe Sarmento nasceu em Lisboa, a 12 de Outubro de 1956. Jornalista, Escritor, Tradutor e Realizador de Televisão. Alguns dos seus livros e textos encontram-se traduzidos em inglês, espanhol, francês, italiano, grego, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, turco e russo. Produziu e realizou a primeira experiência de Videolivro feita em Portugal no programa Acontece para a RTP (Radiotelevisão Portuguesa).Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes (1994-1995).Membro do International Comite of World Congress of Poets. Presidente da Associação Ibero-Americana de Escritores (1999-2000). Coordenador para Portugal da World Poetry Movement. Participou em mais de 100 festivais, congressos e feiras internacionais.

 

 

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