Cultura

I CHING | Noélia Ribeiro

QUARENTENA

 

Encontro-me diante de mim.

Há muito não me visitava.

Carecia mesmo de polimento

a mobília coberta de teias.

O predador enfastiado

em região remota do cérebro

interroga-me. Do quarto 

para a sala, da sala para o quarto,

delineio passado e presente, 

até que a porta de casa se abra

ao festejo dos mascarados.

 

Neste dia, não pisarei

a grama como antes.

Superar a si mesmo

oferece perigo semelhante.

 

TODOS NA TUMBA

(após Vá pra Tumba Limpinho 

de Charles Bukowisk)

 

Charles, ninguém se importa com você.

Seu poema não importa.

Nem a lama nos sapatos do jovem

que acaba de fugir de casa e

tem nas mãos um pássaro 

com a perna quebrada.

Observo da janela da sala: 

ninguém se importa com eles.

Você não sabia?

A cerveja que busco na geladeira, derramo-a 

em dois copos e, solitária, brindo ao amor.

Que importa se os transeuntes 

deixaram os olhos em casa?

 

GATOS MORREM CEDO DEMAIS

 

A noite enforcou a tarde e seu 

burburinho de grandes novidades.

 

Interrompida pela memória daquele amor

silencioso, ela decifra o livro de poemas.

Entre um verso e outro, a avassaladora falta. 

 

Humanos, em seus arrazoados, não compilam 

segundos ou terceiros socorros.

 

O macchiato está esfriando ¬– presume a garçonete.

 

Retirado do velho tórax 

de quinze anos, o líquido da seringa inunda a vista 

que salga a poesia de Eucanaã Ferraz.

 

Gatos morrem cedo demais.

 

I CHING EM 2020

 

Pelo olho mágico, vejo o teto encostar na cabeça

dos velhos em genuflexão; o cansaço de nada

vingar-se dos jovens que violam as saídas de emergência.

 

Avizinho-me do sonho e parto, com as três moedas

do I Ching, no ímpeto de desvendar

o hexagrama em tuas costas.

 

A raposa atravessa a grande água.

Os corpos celestes movimentam-se.

 

Pelo olho mágico, tu me vês atrás da porta.

O mundo sem sentimento perdoa

nosso inviolável abraço antigo.

 

As moedas ficaram no poço.

O desejo, comigo.

Fotografia de Noélia Ribeiro

Noélia Ribeiro é pernambucana, radicada em Brasília. Cursou Letras na Universidade de Brasília (Português e Inglês) e publicou os livros de poesia Expectativa (1982), Atarantada (Verbis, 2009), Escalafobética (Vidráguas, 2015) e Espevitada (Penalux, 2017). Tem poemas em antologias, jornais e revistas digitais. Integra a antologia As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (Arribaçã, 2020). Organiza e apresenta semanalmente a live A Fim de Poesia, em seu Instagram @noeliaribeiropoeta.

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