Cultura

Houaiss, um dicionário ruim | José Augusto Carvalho

Segismundo Spina, no livro Episódios que a vida não apaga (São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 1999, p. 149) afirma que o “Aurélio não tinha, como não tiveram os próprios dicionaristas Cândido de Figueiredo e Laudelino Freire, estofo filológico para um trabalho sério, no campo da lexicografia”. Também não têm estofo os responsáveis pelos verbetes do Dicionário Houaiss. Eis, numa análise rápida, algumas inadequações  que revelam ou a pressa ou a incompetência dos que elaboraram o léxico do Houaiss. Consulto o CD de 2009, da ed. Objetiva, exceto quando me refiro à segmentação da palavra parapsicologia.

 

  1. O Houaiss erra na etimologia. No verbete próprio, Houaiss informa que a origem de vendável é o francês vendable. Segundo Cândido de Figueiredo, no livro Lições Práticas da Língua Portuguesa (8.ed. Porto: Livraria Clássica Editora, 1930, p. 242), vendável  vem do substantivo português venda e não do francês.   A terminação {-ável} pode formar nomes oriundos de verbos normalmente da 1ª conjugação, como condenar – condenável, amar – amável; mas também pode formar adjetivos a partir de nomes, como amorável (de amor, segundo Carlos Goes, no seu Diccionario de affixos e desinências. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937, s.v. avel, e não de um hipotético verbo amorar, segundo informa Houaiss no verbete amorável), palatável (de palato), miserável (de mísero) e, naturalmente, vendável (de venda). Oriundo do verbo vender, temos vendível, de emprego e sentido equivalentes a vendável. 

 

  1. O Houaiss erra na gramática. No verbete xerox, contrariando todos os dicionários e gramáticas do português, o Houaiss registra o plural xeroxes. As palavras terminadas em –x são invariáveis no plural. Fax, sax e fox não são exceções. As formas faxes, saxes e foxes são registradas como plurais regulares de faxe, saxe e foxe, variantes gráficas daqueles três vocábulos. Por isso, também é possível não pluralizar esses nomes obedecendo à norma geral dos nomes terminados em –x.

 

  1. O Houaiss erra na sintaxe. Em muitos verbos, o Houaiss erra na predicação, ensinando, por exemplo, como transitivos indiretos verbos que são transitivos diretos. No verbete satisfazer,  o Houaiss classifica esse verbo como transitivo direto e transitivo indireto, mas registra o exemplo “satisfazer (a) uma promessa”, pondo a preposição entre parênteses, numa clara demonstração de que a preposição, podendo ser suprimida, não introduz um objeto indireto, mas um objeto direto preposicionado, em que a preposição é apenas um recurso eufônico e não sintático. 

 

No verbete morar, o Dicionário classifica o verbo como transitivo indireto com o sentido de “residir em (determinado lugar). habitar, viver”, e exemplifica com as seguintes frases: “mora na rua das Acácias” e “mora em Brasília”, confundindo o adjunto adverbial de lugar com objeto indireto. Mais à frente, o Houaiss “ensina” que morar é transitivo indireto, com o sentido de “compartilhar moradia; viver com”, mas dá os seguintes exemplos: “mora com a mãe” e “mora com vários gatos”, confundindo o adjunto adverbial de companhia com objeto indireto.

 

A mesma confusão de adjunto adverbial com objeto indireto está no verbete ir, verbo intransitivo que o Houaiss considera transitivo indireto na acepção 8 (dar acesso a), com o exemplo “Todos os caminhos vão a Roma”; na acepção 9, o Houaiss informa adequadamente que o verbo ir é intransitivo e dá o seguinte exemplo: “Esse platô vai quase até à serra da Canastra”. A expressão “até à serra da Canastra” é adjunto adverbial de lugar.  Ora se dissermos “ Todos os caminhos vão quase até Roma”, o verbo ir deixa de ser transitivo indireto (na análise do Dicionário) e passa a ser intransitivo? Na verdade o Dicionário confunde adjunto adverbial de lugar com objeto indireto. Os complementos verbais (objetos direto e indireto) exercem função substantiva e não adverbial. Embora em “ir a Roma”, a expressão “a Roma” complete o sentido do verbo, nenhum gramático a consideraria objeto indireto, porque, dando a ideia de lugar, essa expressão exerce função adverbial.

 

  1. O Houaiss erra na conjugação. No verbete adequar, o Houaiss conjuga esse  verbo  em todos os tempos e pessoas, contrariando dicionários (inclusive o Aurélio) e gramáticas que ensinam que adequar é verbo defectivo que se conjuga nas formas arrizotônicas, isto é, nas formas em que o acento tônico não cai na sílaba “de”. Assim, não existem no verbo adequar as três primeiras pessoas do singular do presente do indicativo nem, consequentemente, o presente do subjuntivo inteiro e o imperativo afirmativo. Assim, formas como “eu adéquo, ele adéqua” simplesmente não existem.

 

5 O Houaiss erra na explicação. No verbete gol, o Houaiss informa que o plural gols é um barbarismo e ensina as formas golos, goles e goisGois  é uma aberração do dicionário, porque todas as palavras oxítonas terminadas em –ol têm a vogal aberta no singular e no plural: anzol, futebol, lençol, terçol, sol, etc. A palavra francês rôle (com a vogal tônica fechada) deu rol, em português, com a vogal aberta, mostrando a perfeita adaptação do galicismo aos padrões fonológicos e silábicos portugueses. Gois seria um plural adequado se gol  tivesse a  vogal aberta, como todas as palavras  portuguesas em –ol. Como a tem fechada, gol é apenas adaptação gráfica do inglês goal e, portanto, a forma gols é perfeitamente aceitável. Em outras palavras, a forma gois é que seria um barbarismo.

 

     6.O Houaiss erra no significado dos verbetes.  No verbete  cacófato,

o Houaiss dá as seguintes definições:

 

1  som feio, desagradável, impróprio ou com sentido equívoco, produzido pela união dos sons de duas ou mais palavras vizinhas

 

  • palavra ou expressão obscena, ridícula ou fora de contexto, formada pela sílaba final de uma palavra e pela inicial da seguinte.”

 

A primeira definição está mais próxima do conceito de cacofonia, que consiste no encontro desagradável de sons, não necessariamente obsceno, como em “ela tinha” (= é latinha); a segunda definição é que é de cacófato, que é o encontro de duas ou mais palavras que formam ou uma terceira  palavra ou uma expressão obscena. Mas a definição de cacófato dada pelo dicionário é inadequada, porque o cacófato pode ocorrer não apenas no encontro da sílaba final de uma palavra com a inicial de outra, mas também no encontro de duas ou mais palavras vizinhas, como em “ela não tem pretensões acerca dela” (o cacófato “acerca dela” forma a expressão ridícula ou obscena: “a ser cadela”). Veja-se o Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (2.ed. São Paulo: Cultrix,1978), que, no verbete Cacofonia, estabelece a diferença entre cacófato e cacofonia.

 

  1. O Houaiss erra na designação de classes de palavras. No verbete pastel, o Houaiss informa que se trata de um adjetivo de dois gêneros e dois números na designação de cor, como em “calças pastel”. Ora, o substantivo (preposicionado ou não) junto de um outro substantivo, sem formar palavra composta, exerce a função de aposto e não de adjetivo, como em Rio Amazonas, Montes Pirineus, o Rei D. Manuel, Tecidos Aurora, Praça da República, a cidade de Lisboa (exemplos de Evanildo Bechara, no livro Lições de português pela análise sintática 16.ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001, p. 107-108), vestidos laranja, sequestros relâmpago, comícios monstro, desvios padrão, mandatos tampão, elevadores Nacional, óticas Visual, comandos surpresa, máquinas xerox (exemplo do próprio Houaiss, no verbete xerox), etc. O aposto é função substantiva e não adjetiva. O Houaiss, no entanto, em flagrante contradição, no verbete apositivo, cita “Leis antidroga” como exemplo. Ora, antidroga é um substantivo, como pastel, ao lado de outro substantivo. Por que em “Leis antidroga” e “máquinas xerox” há  aposto; e em “calças pastel”, não? 

 

  1. No minidicionário, o Houaiss erra na divisão silábica. A palavra parapsicologia não tem hífen, por isso, a divisão silábica correta, segundo os gramáticos e a ortografia vigente, é pa-rap-si…, em que as consoantes ps se escrevem em sílabas separadas, como em silepse, elipse, lapso, etc. Mas, contrariando as normas ortográficas, o minidicionário Houaiss separa assim as sílabas de parapsicologia: pa-ra-psi…

 

  1. O Houaiss erra ao omitir verbete citado em outro verbete. No verbete narcolepsia, o Houaiss dá como sinônimo a palavra hipnolepsia, que não existe no dicionário.

 

  1. O Houaiss erra na informação. No verbete estória, o Houaiss informa que se trata de um diacronismo e remete o consulente ao verbete história. Estória não é um diacronismo, porque só entrou na língua portuguesa atual em 1912, em Portugal, graças a Antônio Maria José de Melo Silva César e Menezes, conde de Sabugosa, que propôs o termo no prefácio de seu livro Dama dos tempos idos para designar a narrativa de ficção. É o que informa Luis da Câmara Cascudo no seu Dicionário do Folclore Brasileiro (5.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1979, s.v. estória). No Brasil, o termo foi proposto por João Ribeiro e encampado por Gustavo Barroso em 1942, num artigo em que sugere  oficialmente a grafia estória, calcada no inglês story, como metalinguagem do folclore para designar narrativas e contos tradicionais.. Os textos portugueses antigos, anteriores ao século XVI, registram estória por indecisão ortográfica, como variante de história, e não como um item lexical distinto.  Essa indecisão ortográfica é facilmente observável numa consulta aos Textos arcaicos, de Leite de Vasconcelos (5.ed. Lisboa: Clássica, 1970) em cujas páginas 14-15, por exemplo, o mesmo artigo definido, antes do substantivo herdamento, é grafado de três maneiras diferentes: o, hu e u. Na Crestomatia arcaica, de José Joaquim Nunes (5.ed. Lisboa: Clássica, 1959), só para exemplo, aparecem três grafias diferentes para a palavra honra: hõrra, homrra e honra (p. 29, 30 e 66, respectivamente). O imperfeito de haver é escrito avia ou aviia, por Fernão Lopes, mas era escrito havya por Azurara, na Crônica de Guinee (sec. XV). Mais modernamente, o Diccionario da Lingua Portugueza, de Moraes Silva (Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813), registra vestígio dessa indecisão gráfica no verbete estorial, como variante de historial (sinônimo de histórico).

 

  1. O Houaiss erra na argumentação – O  Houaiss (CD de 2009, da ed. Objetiva) registra  berinjela com < j >, mas remete o consulente à forma beringela, com < g >, que ele prefere, argumentando que essa palavra se encontra com < g > desde a sua entrada na língua portuguesa, “tendo em vista a origem da palavra e os seus primeiros registros na língua” (sic).

 

Dicionário da língua portuguesa contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, no verbete beringela, informa: “Do ar. Bädinjānâ < persa bādnjān, pelo esp. berenjena). Bot. 1. Planta hortense, anual, da família das solanáceas (…) de grandes flores violáceas e fruto comestível.” 

 

Vê-se que a palavra veio de uma protoforma persa, e chegou ao espanhol por via árabe.   Repare-se que, contrariamente à argumentação do  Houaiss ao justificar a grafia com < g >  da palavra berinjela,   o étimo e todas as formas intermediárias na evolução dessa palavra se escrevem com < j >, como consta a informação etimológica do próprio Houaiss e do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

 

Foi a partir do século XIV que berinjela passou a escrever-se com < g > na forma berengensa, depois bringella, no sec. XV, e bringela no século XVI, segundo informação do Dicionário etimológico Nova Fronteira, de Antônio Geraldo da Cunha (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. s.v.).  Se a grafia anterior, na origem da palavra, etimologicamente, é com < j >, e não com < g >, não há como aceitar a argumentação do Houaiss.

 

12- O Houaiss confunde grafias de vocábulos – O Aurélio faz a diferença adequada entre coringa (termo usado no Nordeste para indicar uma vela triangular que se prende à proa de um barco) e curinga (carta de jogar que substitui as outras,  joker, em inglês). O inimigo do Batman é Curinga. O nome do filme é Coringa por causa de um erro provocado por uma interpretação equivocada do dicionário.

 

  Fiquemos por aqui, na óbvia constatação de que é necessária uma boa equipe de estudiosos com excelente formação acadêmica para a elaboração de um bom dicionário. Acrescente-se que a um Dicionário compete abonar as grafias oficiais registradas no Volp, ainda que delas discorde ou ainda que tente fundamentar sua discordância. Um Dicionário deve ser sempre uma obra de consulta confiável e não uma obra que exponha doutrina discutível de seus autores.

José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de várias obras sobre língua portuguesa, entre as quais: Gramática Superior da Língua Portuguesa, Estudos sobre o Pronome, Pequeno Manual de Pontuação, Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa, todas pela Thesaurus, de Brasília.

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