Cultura

Eterno cinza | Adriano B. Espíndola Santos

Naquela manhã cinzenta, amparada por extensas nuvens, das quais não se divisava nada além da densidade do dia, José se apoiou, como uma estaca armada, com o pé direito encravado no joelho esquerdo, em frente à pia, e se pôs, absorto, a lavar as louças, que, salvo engano, jaziam, inertes, por dois dias despejadas ali.

 

Como sabia da manhã? Apreendia algum destino por entre as frestas da janela ao fundo, que dava para o quintal. Pensou que, se as abrisse, correria o risco de embaralhar as ideias, com preocupações outras, como limpar os estragos que poderiam provocar o vendaval. Era sempre assim: José se preocupava mais com o futuro, com o incógnito, que com o presente. O presente, ele vivia à valsa, mas não fazia quase nada para mudar o fado impregnado em suas entranhas.

 

No instante monumental, pensou na mãe, que há um ano cantarolava justamente ali, onde se encontrava. Os sons emitidos por sua boca celestial inundavam a casa de esperança. Agora, a casa poderia ser comparada a uma prisão; ao céu denso, coeso, sufocante, que não permitia qualquer ação contundente, transversal 

à degradação experimentada.

 

Estando respaldado por um atestado médico, convalescendo em decorrência da maldita depressão, esperava, enfim, um milagre, ou coisa que o valha; mas que caísse do alto, sem mais nem menos, e que isso não dependesse dele. Era um penitente, um romeiro errante, sem fé, sem crença viva no amanhã.

Na porta, percebeu um ruído indizível, como ranger de dentes. Assustou-se, de primeiro, e pretendeu ir ao quarto se esconder embaixo da cama, como fizera nos tempos de criança; e, aí, contava com a amável presença da mãe, para resgatá-lo do imponderável. Desta feita, não sobrevinha nada em seu auxílio.

 

Os ruídos se alastravam pela casa vazia, como ecos em uma caverna despovoada de bichos e gente. Tentou aplacar os rumores tapando os ouvidos, na mesma estratégia infantil que o acompanhava, ainda hoje, adulto, com vinte e oito anos. Mesmo assim, não cessaram. Eram permanentes e insistentes, dando-lhe a impressão intensa de ser um incômodo sobrenatural.

 

Falavam, nos causos em que se reuniam os populares para contar em suas calçadas, de tal mau assombro; uma peste que rondava os rincões da cidade, à procura de carne fresca. Suspeitou ser a vítima. Mas, assim, pela manhã, ajuizou ser um momento impertinente para os sucedidos alardeados – ou sucedidos armados pelas imaginações férteis. No entanto, sendo atacado novamente pelo espanto que atiçava os nervos em frangalhos, lembrara-se de que a manhã mais parecia noite, com míseras réstias de luz, que mal caracterizavam o despontar do dia, como estava acostumado.

 

Foi que, como um trator ou um touro bravio, tio Jacinto arrebentou o lugar, com porta e tudo. Parou ao pé da entrada, também assustando com a força desmedida empregada, e, opaco, sem uma gota de sangue, pediu formais desculpas. Deu-se um silêncio imenso, de cerca de cinco minutos; olhares amuados e fixos, um ao outro, como se controlassem distâncias de segurança. “Vim lhe buscar para morar comigo… Você não deve ficar assim. Esta casa é amaldiçoada. Se não se arranjar logo, a morte é certa”.

 

José não discernia bem os acontecimentos; era levado pelas ondas de tantas dores. Porém, sem meios para lutar, foi-se passivo. No segundo dia, o tio o internou numa clínica manicomial, travestida de recanto e de aconchego; “para se recuperar o quanto antes… Precisamos de você recuperado!”.

 

Pelo que se tem notícia, José amofinou progressivamente e morreu de desgosto – falaram os vizinhos, quando, ato contínuo, souberam que a casa onde morava, a casa de grandes encantos de outrora, fora vendida para uma dessas construtoras famosas, para atender às urgentes demandas imobiliárias da região.

 

As histórias se perderam, ou, sendo mais correto na descrição, foram solapadas pela desumanização. José e Maria, a mãe, são, hoje, ligeiras e fugidias lembranças de algo que existiu, meramente pelos números nos assentos de cartório registral de óbito de qualquer lugar.

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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