Ciência

Estórias conceituais. De nós, de outros e de nosotros: as relações de poder implicadas na diversidade | Carlos Walter Porto-Gonçalves

Vivíamos o ano de 1973, em plena ditadura, quando tive uma dessas oportunidades que a vida agradece, por afortunada. Naquele então fui convidado pelo geógrafo Orlando Valverde para participar de uma pesquisa de campo que desenvolvia na Zona da Mata Mineira. Com a experiência de décadas de estudos em Geografia agrária o professor Valverde, num determinado momento da pesquisa de campo, observando a paisagem desde um mirante privilegiado, fez uma descrição minuciosa do sistema de uso da terra. Sua descrição se baseava numa compreensão, fruto de sua larga experiência, que tomava como base as diversas fases em que se encontrava a coivara, o rebrote de vegetação manejado pelo sistema de uso da terra camponês, de inspiração indígena. Assim, o professor trazia o movimento ao longo do tempo do uso da terra praticado naquela região. Não bastasse essa visão panorâmica, num segundo momento, o professor Valverde fez descer toda a sua equipe para entrevistar um camponês que trabalhava naquele momento. Estabeleceu, então, uma conversa com o camponês, diálogo a que fiquei atento, curiosíssimo. Num determinado momento, o professor Valverde perguntou ao camponês qual o tamanho da terra que trabalhava, ao que o camponês respondeu: “Minha terra tem cinco litros”.  Cinco litros de terra!, me espantei. E Valverde, para meu espanto duplicado, continuara conversando normalmente com o camponês, normalmente repito. 

 

Confesso que, para mim, a conversa ficou meio sem sentido e, na dúvida, registrei em minhas anotações. Ao final da tarde, terminado o momento propriamente de campo, regressamos à pousada onde nos abrigáramos e, depois de um bom banho e um bom jantar, como costumava recomendar o Mestre, fomos à conversa em que repassávamos os aprendizados e dúvidas do dia. Coloquei em tela meu espanto com os tais cinco litros de terra como unidade de medida de área. O Professor Valverde logo me esclareceu. D’Artagnan, era assim que ele me chamava dado o meu vasto bigode e meu espírito combativo, numa alusão aos Três Mosqueteiros da série francesa, os cinco litros de terra eram a área que ele conseguia cultivar com cinco litros de sementes. E, explicou, o sistema de medida tinha a ver com as condições técnicas e culturais de trabalho praticadas naquela região. Imediatamente me veio à mente outra referência em minha formação intelectual e política, a antropóloga Luitgarde Cavalcanti, professora que me havia introduzido nessa ciência pela qual, desde então, me apaixonei, a antropologia e suas críticas ao etnocentrismo. 

 

Ali juntei ideias que me acompanharam por toda minha vida intelectual e política. Afinal, cada povo mede e pesa sua vida de um modo específico, tanto no sentido material como simbólico. E, já ali, aprendi, definitivamente, quanta violência advém da imposição de um sistema de medidas que acreditamos tão banalmente ser natural, como é o caso do sistema métrico decimal. E não foram poucas as rebeliões e revoltas na história da humanidade contra essas imposições. No Brasil, basta lembrar a Revolta do Quebra-Quilos1 (1872-1875) que se espraiou da Paraíba ao Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas, depois que João Carga D’água, vendedor de rapadura, liderando um grupo de revoltosos invadiu a feira de Fagundes, povoado próximo a Campina Grande, e quebrou as medidas fornecidas pelo governo e usadas pelos feirantes. Afinal, não eram medidas quaisquer, mas pesos e medidas que alteravam as razões e proporções, essa matemática imaginária com que cada povo, cada cultura se faz a si própria se constituindo como tal, processo que o linguista alemão Carlos Lenkersdorf2 chamaria de processo de nosotrificação que desenvolvera aprendendo com os maias-tojolabales, em Chiapas, sul do México. Esclareça-se que, em língua tojolabal, a expressão tik, repetida reiteradamente, indica o sentido de nosotros em espanhol, expressão que, no caso, se mostra mais rica que o nosso “nós”, em português, em que nos falta o outro. 

 

O Quebra-Quilos é justamente essa expressão do Nosotros, haja vista que esse nós emerge no encontro, no caso, desencontro, com/contra o outro. O nós se constitui com/contra o outro. Evitemos, assim, os essencialismos que se fundam na suposição de que as identidades são anteriores às relações que as constituem. E, mais, acreditam que o indivíduo é anterior às relações que o constituem como é da tradição do “magma de significações” da  sociedade ocidental com seu princípio atomístico individualista e sua “lógica identitário conjuntista”, tão bem analisados criticamente por Cornelius Castoriadis3. No mundo andino, entre os “quéchua” e os “aimará”, segundo Josef Estermann4, não há sequer uma palavra equivalente a indivíduo pois, para esses povos, tudo que existe é relação e relação de relação. Poderíamos, ainda, invocar o poeta Caetano Veloso quando nos diz que “a tua presença entra pelos sete buracos da minha cabeça”, o que nos permite constatar que nossos corpos se fazem pelas aberturas (olhos, boca, narinas, orelhas, pênis, ânus, vagina e todos os outros poros) com as quais nos relacionamos com outros corpos e nos constituímos conformando nossos espaços de vida, onde buscamos oxigênio e a água que estão fora de nós e nos atravessam e, por essas trocas metabólicas, nos constituímos. Ou, ainda, outro poeta, Fernando Pessoa, quando nos diz que “Minha pátria é minha língua” e, com isso, nos remete à dimensão social da linguagem na medida em que não existe linguagem individual. Ninguém pensa fora de uma língua. O plural de eu é nós e não eus, ainda que a língua portuguesa, diferentemente da espanhola e dos maias-tojolabales, não aproxime o outro do nós.  Nossa incompletude biológica nos impele ao outro. A linguagem dá sentido societário conformando sentidos comuns para a vida na sua mundanidade, na sua materialidade que, não olvidemos, deriva de mater, mãe, a fonte da vida.

 

Enfim, é na relação que as identidades se formam, se conformam. Como nos ensinara E.P. Thompson, na expressão luta de classes, a palavra forte é luta e não classe, pois é na luta que as classes se formam5. Ou ainda, como Anibal Quijano (2009), que nos convida a falar de classificação social não como recurso heurístico6, mas sim como o modo/processo através do qual os grupos sociais se fazem classe, ficam classe, se classi-ficam em suas relações.  Não confundamos, pois, classe enquanto fenômeno ontológico relacional com classificação heurística que tende ao dogmatismo, ao fundamentalismo, ao positivismo.

 

Alguém já disse que é mais fácil aceitar as ideias novas que se desfazer das antigas que já conformaram hábitos e nossas relações com os habitats e os habitantes. Os gregos distinguiam techné de poiesis, a produção repetitiva da produção criativa, ainda que toda técnica tenha sido, em algum momento, uma criação. Mas há uma diferença radical entre esses mundos: “Navegar é preciso. Viver não é preciso” (Fernando Pessoa). Entendamo-nos: navegar é coisa da técnica, da precisão. A vida, não. Como afirma Maturana (2002)7, a vida é autopoiesis, autoprodução/reprodução permanente em processo de diversificação/complexificação e que nos desafia politicamente com a ideia de Natureza, essa categoria das categorias. Afinal, a Natureza é o que se faz por si próprio, o que se autogoverna naturalmente. “Não tem governo nem nunca terá” (Chico Buarque).

 

A vida implica relação e relação de relação e, assim, nossa incompletude implica o outro. A vida não é política a não ser a partir do momento em que os organismos vivos sejam entidades dotadas de poder. Só os humanos, enquanto seres simbólicos, são entes propriamente políticos, geradores de relações de poder: de domínio, subjugação e extermínio do outro, nos ensina Enrique Leff. A natureza pode ser uma fonte de inspiração em sua autopoiesis, suas relações de complementaridade e reciprocidade, sua evolução através da diversificação/complexificação onde a ajuda mútua torne possível a vida contra o homo homini lúpus hobbesiano, como já nos ensinara o geógrafo Piotr Kropotkin8 (2009, [1921]). Aprendi muito cedo, com Orlando Valverde, com Luitgarde Cavalcanti e com os camponeses, a epifania da diversidade que, mais tarde, vi teoricamente refinada com a descolonização do saber e do poder com a luta pela vida, pela dignidade e pelo território proposta por camponeses, indígenas e populações das periferias urbanas de nossa Amazônia e América Latina/Abya Yala, que nos desafiam a superar o capitalismo e a colonialidade.

 

Notas

 

1 Souto Maior, Armando. Quebra-quilos: lutas sociais no outono do Império. São Paulo: Ed. Companhia Editorial Nacional. 1978.

 

2 Lenkersdorf, Carlos. Filosofar en clave tojolabal. México: Ed. Miguel Ángel Porrúa, 2002.

 

3 Castoriadis, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

 

4 Estermann, Josef. Filosofía Andina: sabiduría indígena para um mundo nuevo. La Paz: Ed. ISEAT, 2006.

 

5 Thompson, Edward. P. A Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1981.

 

6 Quijano, Aníbal. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: Santos, Boaventura e Menezes, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra: Ed. Almedina, 2009.

 

7 Maturana, Humberto. Ontologia da Realidade. Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2002.

 

8 Kropotkim, Piotr. A Ajuda Mútua:  um fator de evolução. Ed. Senhora, São Sebastião, 2009 [1921]

 

Carlos Walter Porto-Gonçalves:  Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF e Coordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades.

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