Cultura

Embriaguez de amor

Luiz estava tão cheio de amor que vazava.

O sentimento envolvia-lhe o cérebro e o coração, descia pelo peito, enrodilhava-se no seu sexo, deslizava pela perna esquerda e caía na calçada, preso a ele e acompanhando-o em sua caminhada. Ele iria encontrar sua musa em menos de uma hora e andava pelas esburacadas ruas paulistanas sem notar coisa alguma em seu redor, relembrando momentos de paixão com Isadora, simplesmente amando. E vazando.

Pela calçada ficavam corações e flores. E também beijos e carícias junto a detalhes do corpo da amada: os olhos de Isadora, os seios de Isadora, o sexo de Isadora. E, claro, as partes correspondentes do corpo dele. Tudo em miniatura, para poder escorrer pela perna. Muitos do que cruzavam seu caminho, distraídos, nem notavam e seguiam reto; outros percebiam a trilha de amor em cima da hora e, perturbados, faziam malabarismos para não pisar em algum coração, ou beijo, ou peitinho, ou sexo. Já os que vinham atrás riam daquele transbordar de amor, mas tendo no fundo uma pontinha de inveja.

Um bando de cachorros também o seguia. Pareciam inebriados, famintos pela paixão de Luiz e Isadora, e lambiam avidamente os ícones do amor que encontravam pelo caminho até dissolvê-los pouco a pouco.  Se alguns transeuntes pareciam escandalizados com o vazar de emoções, outros olhavam com algo semelhante a nojo para a intervenção canina em um sentimento totalmente humano.  E houve quem se assustasse com os cães, de aparência ameaçadora.

Eram todos vira-latas sarnentos, de uma longa linhagem de mestiços sem raça definida, das mais diversas pelagens, formatos e tamanhos.  Em comum, o fato de serem sobreviventes das ruas paulistanas e de estarem seguindo Luiz, tão embriagados de amor quanto ele. E querendo mais.

Luiz subiu a avenida Ipiranga vazando cada vez menos e, quando entrou por engano numa travessa sem saída da Consolação, perto do teatro onde encontraria Isadora, o amor parou de escorrer. O sentimento dentro dele o preenchia inteiro, sua mente, seu coração, seu peito mas, pelo menos por algum tempo, não escorria mais pela perna. Luiz voltou-se para retornar à Consolação – e pela primeira vez viu a matilha. 

Já eram uns 20 animais, que o olharam com aquele olhar canino límpido e suplicante. Ele fez um gesto brusco para afastá-los, mas os cães não se moveram, ficando à espera de inebriantes mostras de amor. Quando estas não vieram, começaram a rosnar e fecharam o cerco sobre ele.

Isadora saiu do teatro e não viu Luiz. “Meu amor se atrasou”, pensou com ternura. Foi caminhando e viu uma multidão na entrada de uma travessa sem saída. Aproximou-se, curiosa, e viu, caído mais para dentro da rua, o corpo do amado, dilacerado por incontáveis mordidas. No chão, perto de sua perna esquerda, quebrada e dobrada em um ângulo impossível, dois coraçõezinhos se desfaziam lentamente.

 

Fotografia de Carlos Eduardo Matos

Meu nome é Carlos Eduardo (Cadu) Matos. Nasci em 1946, em Niterói, cidadezinha diante do Rio de Janeiro – uma Almada da baía de Guanabara. Formei-me em Direito em 1968 mas jamais advoguei. Dei aulas de Sociologia na Fundação Getúlio Vargas- SP e, antes disso, em 1975, na Escola Bento de Jesus Caraça, em Évora. Sempre exerci o ofício de escritor. Desde 1969 trabalhei como editor, redator, tradutor, preparador de texto e revisor para editoras de fascículos, revistas e livros didáticos e não didáticos. Contudo, apenas em 2018 escrevi meu primeiro texto pessoal, não encomendado por uma empresa. E não parei mais. Lancei quatro e-books pela Amazon: Shoshana – publicado na íntegra em quatro edições sucessivas da InComunidade – e os livros de contos Lili dos dedinhos, A outra e Rebeldes.

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