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Editorial: túmulo dos impérios e país da vergonha | Henrique Dória

Acabámos de assistir àquela que é a mais humilhante derrota do Império Americano após a Segunda Guerra Mundial.

 

Depois da retirada das forças soviéticas do Afeganistão, iniciada em Julho de 1987, o governo comunista conseguiu resistir três anos aos talibãs e a uma coligação de forças internacionais que englobava desde os assassinos da al-Qaeda, expedicionários sauditas comandados por Osama bin Laden e armados e treinados pela CIA, a forças iranianas e paquistanesas, com o auxílio da própria China. Essa coligação que combatia a União Soviética teve, no seu conjunto, 100 mil homens lutando ao lado dos talibãs e dos senhores da guerra afegãos. Mas, mesmo depois da retirada dos soviéticos, as forças do regime comunista afegão dirigido por Mohammad Najibulah não só não entregaram o poder de mão beijada como conseguiram ainda uma importante vitória sobre os mujahedine e seus aliados em Jalalabad.

 

E, talvez o regime comunista do Afeganistão tivesse resistido aos talibãs, aos senhores da guerra e à ampla coligação internacional se não fossem as divisões internas do PDPA, o partido comunista que suportava o governo afegão, dividido em dois grupos que se combatiam.

 

Depois da retirada americana, o governo fantoche e corrupto que os EUA instalaram em Cabul durou três dias a entregar o poder às forças talibãs que dispunham apenas de 75 mil homens, e o seu exército não se limitou a depor as armas sofisticadas que lhe haviam sido fornecidas pelos americanos secundados por outros países da NATO, entregou-as de imediato aos talibãs que assim ficaram, gratuitamente, de posse de um enorme e sofisticado arsenal de guerra.

 

A retirada dos EUA não constituiu só a mais humilhante, mas foi também a mais cobarde retirada das suas forças armadas de qualquer país, incluindo a retirada de Saigão. Dizendo que invadiram o Afeganistão para retaliar o ataque às Torres Gêmeas e defender os direitos humanos, percebeu-se bem que os direitos das mulheres e dos homens afegãos que resistem ao retrocesso daquele país para a Idade Média mais obscurantista de nada interessam ao Império Americano. Se é compreensível que os EUA não poderiam deixar de reagir com violência contra  os autores do humilhante ataque às Torres Gêmeas, a experiência secular das derrotas dos impérios no Afeganistão, desde Alexandre Magno aos soviéticos, passando pelos ingleses, tudo aconselharia a que os americanos não se metessem no ninho de vespas afegão. A destruição de todos ao palácios, aeroportos e quartéis do poder talibã, desde Cabul às províncias afegãs,  acompanhado de severas sanções e do apoio à resistência interna poderia muito ser o caminho para estabelecer a democracia no Afeganistão. 

 

Não o quis assim o imbecil George W Bush. Procurou uma demonstração de força que permitisse mostrar a todos que, ao contrário dos soviéticos, os americanos dominavam agora o mundo sem contestação e poderiam estabelecer bases tanto para o demonstrar à China como para atacar o Iraque, que o corrupto e cínico Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, queria invadir também, em simultâneo com o Afeganistão. Isto apesar de, poucos meses antes, Bush ter afirmado que tinha no governo dos talibãs um bom aliado no combate à droga que era, curiosamente, a maior fonte de receita do governo talibã de Kabul.

 

Os soviéticos sustentaram um poder que libertou uma grande parte do Afeganistão do obscurantismo medieval dos talibãs, mas colapsou também por conseguir esse feito notável. Sustentaram uma guerra que durou 10 anos. O Império Americano, ao fim de 20 anos, conseguiu instalar governos sucessivos minados pela corrupção e que, ultimamente, nem sequer pagavam aos seus militares, fez do Afeganistão o produtor de 90% do ópio que circula a nível mundial e, com a total incapacidade de Trump e Biden, levou a cabo uma retirada que fica na história como o mais cobarde abandono dos aliados à sua sorte, para muitos deles, à tortura e à morte.

 

Algumas palavras finais para as manifestações de regozijo de Varoufaquis e muitos comunistas, incluindo o PCP, com a derrota americana. Eles seguem a estúpida linha política também pelos americanos ao apoiarem, armarem e treinarem os talibãs contra o poder comunista instalado em Kabul, de que os inimigos dos nossos inimigos nossos amigos são.

 

Para eles parece que a tragédia das mulheres e dos homens do Afeganistão lhes é indiferente. Mas se eles próprios têm inimigos, os talibãs que acabaram de tomar o poder em Kabul são, com toda a certeza, um deles. E se o poder americano no Afeganistão era mau, o poder dos talibãs, garantidamente, é muito pior.

 

Só um cego por algo semelhante à religião dos talibãs é que não quer ver essa verdade evidente.

Fotografia de Henrique Dória

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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