Cultura

É preciso que a leitura seja um ato de amor: notas para uma leitura lenta da poesia brasileira e norte americana | Nuno Brito

Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas quais padece.”  

Mia Couto.

 

***      

 

  Ouve-me então com  

                   teu corpo inteiro. 

Clarice Lispector.

 

Na comunicação What reading Slowly taught me about writing, a escritora afro-americana Jacqueline Woodson reflete sobre o seu próprio processo de aprendizagem da leitura enquanto criança e a forma como a sua forma lenta de ler contrariava as expetativas do ensino primário e os padrões quantificados de leitura: “I was that child with her finger running beneath the words, until I was untaught to do this; told big kids don’t use their fingers. In third grade, we were made to sit with our hands folded on our desk, unclasping them only to turn the pages, then returning them to that position (…)”. (Woodson, 2020) A uma leitura automática, inativa fisicamente – com as mãos pousadas na secretária – Jacqueline Woodson contrapõe a experiência de uma leitura mais ativa realizada em casa: “ we were always being pushed to read faster. But in the quiet of my apartment, outside of my teacher’s gaze, I let my finger run beneath those words” (Woodson, 2020) e como esta leitura lenta possibilitava ler outras camadas do texto, que uma leitura rápida, superficial e automática não alcançava, permitindo uma maior profundidade das diferentes camadas de uma narrativa, e uma maior atenção às diferentes vozes e histórias que as compõe; neste sentido Jacqueline Woodson fala-nos do efeito de Fictive Dream, um estado de completa imersão no livro, nas histórias e nas narrativas que vai para além da leitura e que se expande ao longo dos diferentes momentos do dia: algo só possível através de uma leitura lenta e de uma releitura dos textos, algo muito próximo do coração do ouriço, imagem que Derrida nos dá para a poesia no seu pequeno ensaio: “O que é a poesia?”, falando-nos na sua capacidade de concisão e de concreção – aquilo que se quer saber de cor – que se quer ter no coração –  efeito de memória física que Jacqueline Woodson alia à importância de uma releitura – e que nesse sentido inicial da palavra ler: “Legere: Escolher, selecionar”, é também um voltar a passar (o poema) pelo coração, escolher, direcionar. Nesse sentido ler com o dedo debaixo de cada uma das palavras – ler (de)vagar (como o próprio poema de Herberto Helder indica), permite uma intensificação e um sonho imersivo, mas também um aumento pela atenção das histórias que nos compõe, e nisso de um olhar mais plural, que cada releitura pode intensificar, nesse sentido, possibilitando um olhar de empatia para histórias que a uma primeira leitura se mostravam simples mas que se complexificam com as diferentes releituras mostrando diferentes ângulos e permitindo um olhar mais empático, mostrando como também nada é puramente uma só coisa: “And that Selfish Giant again told me his story, how he had felt betrayed by the kids sneaking into his garden, how he had built this high wall, and it did keep the children out, but a grey winter fell over his garden and just stayed and stayed”. (Woodson, 2020)

 

A esta pressão social para ler, pensar e julgar rápido Jacqueline Woodson impõe uma desaceleração, uma pausa e um silêncio necessário, um tempo de absorção que é nisso também criativo, que parte de uma atenção às histórias que nos compõe enquanto humanos e às diferentes camadas que nos compõe – tão dialogante com o pensamento de Mia Couto: “Somos humanos exatamente porque não somos apenas uma entidade biológica. Somos feitos de histórias tanto como somos compostos de células. As histórias são também um lugar onde nos inventamos eternos e encantados”, ou como o autor moçambicano adianta em Cada homem é uma raça: “História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens.”: Ou de uma outra forma ainda, para que a história não seja mal contada há uma pluralidade a ser cumprida: Como afirmaria Paulo Freire no livro-conversa com Myles Horton: “É preciso que a leitura seja um ato de amor” (Freire, 1983), adiantando que “Mais do que uma decodificação da palavra escrita –“ há uma leitura do mundo  que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade daquele. (Freire, 1982). Contra o automatismo de uma leitura rápida e parcial há uma leitura do texto que é também uma leitura do mundo, do humano, das histórias, pela qual a atenção é também um ato revolucionário face aos excessos de informação, a superficialidade e o resíduo de de uma hiperconexão com plataformas que aparentemente nos tornam todos próximos. – Além da norma, do cânone e do estereotipo – do previsível e do superficial: É preciso que a leitura esteja atenta ao mundo, sobre isso mesmo refere Paulo Freire em A Importância do acto de ler

 

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas núvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolegar. (Freire, 1982)

 

A uma leitura atenta e ativa da palavra deve corresponder uma leitura ativa e viva do mundo, que ultrapassa o papel e se torna ativa, não mais associada às mãos quietas em cima da secretária – Uma leitura física, (com o corpo): “My finger beneath the words has led me to a life of writing books for people of all ages, books meant to be read slowly, to be savored”. (Woodson, 2020)

 

My love for looking deeply and closely at the world, for putting my whole self into it, and by doing so, seeing the many, many possibilities of a narrative, turned out to be a gift, because taking my sweet time taught me everything I needed to know about writing. And writing taught me everything I needed to know about creating worlds where people could be seen and heard, where their experiences could be legitimized, and where my story, read or heard by another person, inspired something in them that became a connection between us, a conversation. (Woodson, 2020)

 

Uma vez mais: Para que a história não seja mal contada, para que ela não seja parcial, para evitar o preconceito: É preciso que a leitura seja um ato de amor – ou outra vez em contacto com a escritora afro-americana, para que ela crie mundos, nesse sentido ela é uma escolha como a própria origem da palavra nos diz: Legere que em latim significava escolher, eleger: Uma Leitura de um outro lado (uma Leitura plural), como uma escolha de inclusão de perspetivas e ângulos de visão e nisso, tal como a escrita, um aumentar também do nosso mundo e um processo de conhecimento em que Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Sobre a importância da releitura, Paulo Freire vai tecer várias reflexões ao longo da sua obra e do seu pensamento no que diz respeito à educação, conectando a releitura com um processo de intensificação e de maior proximidade com o texto. De uma forma próxima Walter Benjamin reflete sobre os processos de transcrever os textos como uma outra forma física de leitura, ativa, através da escrita, num sentido de proximidade, de “close Reading”. O pequeno texto: “porcelanas da China” de Rua de mão única, em que este nos fala da arte chinesa de copiar (transcrever) livros, considerando-a como uma incomparável garantia de cultura literária. Neste texto, Benjamin contrasta dois tempos, duas velocidades, a da leitura e a da transcrição através da seguinte metáfora:

 

A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve. Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e de como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas a planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, a cada uma das suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila”. (Benjamin, 1987)

A força do texto depende da intensidade com que é percorrido, nisto ele é como uma paisagem, um caminho, e nisto cada leitor é alguém que se desloca no espaço, a sua vivência da paisagem ou do texto será diferente de pessoa para pessoa, ou em contacto com um poema de Luis Miguel Nava: “São outras as paisagens quando alguém / as vê pelas janelas do seu próprio coração” (Nava, 2002), ou de Fernando Pessoa, “É dentro de nós que a paisagem é paisagem” (Pessoa, 1982), a força será outra também de acordo com o tempo que a levamos a percorrer, e nisso há um tempo individual, inerente a cada um de nós, mas também um tempo que percorre velozmente, que vê de cima, que não toca, (o do aeroplano) e dos que experimentam o seu domínio, os que caminham sobre ela; as perspetivas são radicalmente diferentes, caminhar sobre a terra exige lentidão, contacto com ela, visão do solo, dos caminhos, de uma paisagem com a qual o caminhante se nivela, se confunde; a velocidade de uma aeroplano nunca poderá captar as nuances do caminho, as clareiras, os carreiros, os contornos, as elevações, os pormenores. O tempo de voo é descrito assim como o tempo de uma leitura rápida que não aprofunda, enquanto que o tempo da terra se aproxima da do caminhante que a pisa, que com ela cria uma relação, um percurso, mais próximo. 

 

Nos seus cadernos H o poeta brasileiro Mário Quintana contém um pequeno texto intitulado “Educação” composto por um único verso: “O mais difícil mesmo é a arte de desler” (Quintana, 1973). Ao adicionar o prefixo “des” ao infinitivo do verbo “Ler”, Mário Quintana sugere ativamente uma multiplicidade de sentidos aliados à desconstrução de uma leitura programada, automática e ao questionamento de um conhecimento feito e solidificado, entre as muitas camadas sugestivas do neologismo, ele nunca deixará de transmitir a ideia de uma leitura ativa, perspicaz e criativa: uma leitura atenta e regenerativa, uma leitura dos diferentes lados que nos compõe e das histórias que – outra vez Mia Couto – são também parte do nosso corpo biológico, como as células ou o sangue. Exercício difícil, mas necessário e vital, que podemos conectar, a um estar atento (não só ao texto e à palavra), mas ao mundo, próximo do colocar o dedo – visível ou invisível – debaixo das palavras. O respeito à narrativa e à pluralidade das histórias individuais e coletivas, e da leitura como um ato de empatia: É de notar como a natureza do poema e do neologismo de Mário Quintana se aproxima muito mais a uma ideia de instrução do que de educação, no sentido que o pensador Agostinho da Silva lhe conferia, desde logo na sua raiz etimológica:

Instruir é um parente do verbo construir e aluno tem como significado remoto “o alimentado”. Educar tem um elemento de condução e outro de redução, porque a educação reduz o individuo daquilo que ele é, para o adequar aos costumes da sociedade. 

 

A vitalidade expressiva da palavra “Desler” aproxima-se muito mais a uma ideia de instrução e de uma procura mais livre e ativa de conhecimento que dialoga não só com uma desconstrução do saber já feito mas também com um questionamento constante e uma leitura ativa que implica também que a ordem linear de uma história pode ser desestabilizada. 

 

Com esta mesma ideia dialoga o poema dos mesmos cadernos: “A Arte de Ler”: “O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até à presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria”. (Quintana, 1973).

 

Sendo a leitura uma escolha e um processo ativo o leitor pode escolher não chegar ao fim e quebrar o compromisso com um desenlace e com um discurso que tende para uma resolução. Nesse sentido, Mário Quintana contrapõe também as ideias de prosa e poesia, “Tudo já está nas enciclopédias e todas dizem as mesmas coisas. Nenhuma delas nos pode dar uma visão inédita do mundo. Por isso é que leio os poetas. Só com os poetas se pode aprender algo novo” (Quintana, 1973). Aquilo que Manoel de Barros resumiria no aforismo: “Tudo o que não invento é falso” ou já muito antes Novalis: “Quanto mais poético mais verdadeiro”. A leitura da poesia como um conhecimento mais profundo, lento e denso, através do qual “o grau da lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento». (Kundera, 1996). Se a velocidade se alia a uma experiência de superficialidade, a um viver sem tocar, a lentidão estabelece conexões profundas, agarra verdadeiramente: permite ouvir o silêncio do outro, a história do outro, sentir uma repercussão, estabelecer um diálogo: “conversation is not a pastime; on the contrary, conversation is what organizes time, governs its and imposes it own laws, which must be respected” (Kundera, 1996). A lentidão é agora uma força imposta por um olhar poético, por uma condição de interioridade, por um gesto de cristalização, de entranhamento ou de incorporação, nesse sentido um poema que se sabe de cor é também parte dos tecidos do coração, e nisso um poema pulsa porque está no sangue e é também parte do nosso corpo como a história dos nossos antepassados, ou as nossas raízes, talvez só a partir desta ideia se possa – sem nunca perceber completamente – mas incorporando poemas tão diversos como “A Flor e a náusea” de Carlos Drummond de Andrade, “Boi Morto” de Manuel Bandeira ou “O Cão sem plumas” de João Cabral de Melo Neto. Só sendo já parte do nosso corpo se pode ler os poemas: “Ama como a Estrada começa”, ou “Sê plural como o universo”, imperativos de um só verso de uma profundidade física, ou o poema-carta de Emily Dickinson a Susan Dickinson: “For the faithful: absence is a condensed presence / To the others – / But there are no others”. Talvez ler nos ajude a incorporar um pouco mais isto– e talvez isso seja já uma aproximação à frase de Paulo Freire. Ler pode ajudar-nos um pouco a perceber que a história é mais complexa, que a história é plural porque a vida é plural. E nesse sentido, ler é, acima de tudo, prestar atenção: mostrar um mundo mais interessante e mais complexo, um mundo mais poroso – com mais vozes e com mais sentidos – porque os sentidos são em todas as direções, e porque a verdade gosta de todas as curvas, ler aproxima-nos – e é um ato de libertação – um aumentar do nosso mundo.

 

REFERÊNCIAS

 

Benjamin, W. (1987). Rua de mão única. Editora Brasiliense. 

 

Bertman, Stephen. (1998). Hyperculture: the human cost f speed. Westport. 

 

Couto, M. (2019). O Universo num grão de areia. Caminho.

 

Freire, P. (1982). A importância do ato de ler em três artigos que se complementam. Editora Autores Associados / Cortez Editora.

 

Freire, P., & Horton, M. (2003). O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. Editora Vozes.

 

Lispector, C. (1975). A cidade sitiada. José Olympio Editora.

Nava, L. M. (2002). Poesia Completa. Dom Quixote.

Pessoa, F. (1982). Livro do Desassossego: Bernardo Soares. Ática. 

Quintana, M. (1973). Caderno H. Editora Globo.

 

Woodson, J. What Reading slowly taught me about writing:

 

https://www.youtube.com/watch?v=HzAtOyw6ACw&t=6s

Acedido em 3 de Fevereiro de 2022.

 

Nuno Brito nasceu no Porto em 1981.  É autor dos livros de poesia: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015) e O Desenhador de Sóis (2017).

É leitor do Instituto Camões na Universidade da Califórnia em Santa Barbara onde vive desde 2015 e onde obteve o Doutoramento em Literaturas Brasileiras e Portuguesas, foi professor de Literatura Portuguesa na Universidade Nacional Autónoma do México onde viveu entre 2012 e 2014. 

Foi editor da revista literária Cràse e publicou em diversas antologias de poesia em Portugal, Espanha, México e Grécia, entre as quais a Antologia da Jovem Poesia Portuguesa (Atenas, Valkixon, 2021), a Antologia Lluvia Oblicua: Poesía Portuguesa Actual. (México: Círculo de Poesía, 2018), O Binómino de Newton e a Vénus de Milo: Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa, organização de Vasco Graça Moura e Maria Maria Bochicchio (Lisboa: Aletheia, 2011) e Antologia Jovens Escritores 2008 (Lisboa, Clube Português de Artes e Ideia). Foi distinguido por duas vezes com o Prémio da Associação de estudantes da Faculdade de Letras do Porto na categoria de Poesia e Conto e foi selecionado para a Mostra Jovens Criadores (Literatura) 2008 em Lisboa.   É coordenador editorial juntamente com Maria Bochicchio da colecção Novíssima da editora Exclamação. 

Ode Menina é o seu quarto livro publicado pela editora Exclamação e reúne textos escritos entre 2018 e 2021, assim como alguns textos publicados anteriormente em livro.

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