Cultura

Deus? | Flávio Ricardo Vassoler

Preâmbulo 

 

Dois senhores estão sentados num banco de uma praça europeia (seria em Braga, cidade portuguesa onde eu morei?) numa tarde de primavera. Enquanto entreouço a conversa de Pedro e Paulo (chamemo-los assim) sobre nada mais, nada menos do que Deus, flores policromáticas testemunham o fluxo delicado das águas aspergidas por um chafariz de pedra (ou seria de bronze decrépito?) tão altivo quanto um totem.  

 

Pedro gesticula com as mãos enquanto fala, como se fosse um maestro de suas próprias ideias. A verve de suas argumentações ateias (ou seriam agnósticas?) não consegue escamotear o dorso de suas mãos recoberto por nódoas marrons e veias intumescidas, que lembram as raízes de uma árvore agonizante emergindo, como golfinhos, em busca de uma última lufada de vida. Enquanto argumenta, Pedro esbugalha os olhos, e seu rosto parece sitiado entre as escleróticas em riste e o cachecol felpudo – o vento primaveril ainda é capaz de fustigar.   Paulo, em sua fleuma, parece decantar a espiritualidade (ou seria o agnosticismo?) em que acredita. Sob um chapéu cinza algo puído e guarnecido por um paletó com cotoveleiras marrons, ele fala com uma cadência que abre alas para o arejamento da dúvida (ou seria do ceticismo?) de quem já viveu em demasia e que, portanto, já pôde conversar com nossas muitas crenças e apostasias, verdades e heresias – Paulo, em suma (e apesar do reumatismo que lhe ataca os quadris), é alguém acostumado à contradança de nossas muitas contradições. (Talvez por isso seu bigode ralo esteja sempre desgrenhado, por mais que ele tente aprumá-lo com o indicador direito amarelecido pela nicotina de outrora – Paulo parou de fumar há 10 anos.) 

 

*  *  *  *  *  *  *  * 

 

Paulo: Faz 40 anos que não abraço a minha mãe. Faz 50 anos que não vou ao estádio de futebol com o meu pai. Ontem, depois de décadas, foi a primeira vez que a saudade não me deixou dormir. 

 

Pedro: Para nós dois, a saudade já não é um sentimento nostálgico, a saudade já não é um cheiro de gaveta mofada. A saudade está logo ali, deitada em sepulturas recobertas de bolor, musgo e esquecimento. Logo, logo, nós dois estaremos ao lado dos nossos ancestrais, velho amigo. Agora, se nós vamos reencontrá-los ou não; se eles ainda existem ou não; se nós vamos deixar de existir ou não, aí é outra história…  

 

Paulo: Você acredita mesmo, com todo o seu ser, que a morte é o fim de tudo?  

 

Pedro: O fim e o começo, ômega e alfa: o Apocalipse, que, a bem dizer, Caim já consegue divisar desde o 

Gênesis.  

 

Paulo: Isso não faz sentido…  

 

Pedro: Ora, ora, será que você, aos 49 do segundo tempo, já há muito fazendo hora extra por aqui, ainda espera que a vida faça sentido?! 

 

Paulo: Sim, é a esperança mais funda que eu guardo comigo, um amuleto que me ajudou a atravessar esta vida, sobretudo em meus momentos mais sombrios. E é por isso que eu lhe digo: não faz sentido que a morte seja o fim da vida, assim como não faz sentido que a morte seja a centelha da vida, seu início. Afinal de contas, se nós estamos aqui, é porque nós nascemos, é porque nos deram à luz. Se nós nascemos, é porque houve algo (a vida!), e não o nada, e não a morte.  

 

Pedro: “Por que o real existe para além do nada?”: eis uma pergunta-só-lâmina, que, a bem dizer, funda a filosofia, que se confunde com a teologia, e a teologia, que, como Nietzsche bem o sabia, sempre se esgueira sob a filosofia. Não só não sei dizer por que o real existe para além do nada, bem como tal questão, assim como a vida, não faz sentido algum para mim. No entanto, além de pressentir que, sob sua fé supostamente apaziguadora, se esgueira uma torrente de inquietude, dúvida e dor, devo dizer que você estabelece uma contiguidade que me parece inválida entre a vida do ser humano e a existência do cosmos.  

 

Paulo: É mesmo? Por quê?  

 

Pedro: Como nós nascemos, crescemos e morremos, você pressupõe, de forma antropocêntrica, que o cosmos também o fez e o faz. Mas, como astrônomos e astrofísicos já revelaram, esta Terra não passa de um grão de areia em face da imensidão do cosmos. (Sempre que me lembro das fotos de galáxias longínquas tiradas pelos mais sofisticados telescópios, chego à conclusão de que a pequenez do grão de areia ainda é enorme em face da nossa completa insignificância cósmica como planeta repleto de seres vivos e mortos.) Isso quer dizer que (1) nós não somos especiais na arquitetura (sem arquiteto) do universo e que (2) o universo pode não ter um nascimento – ou, para usar o seu vocabulário filosófico-teológico, uma parteira, um Criador – como tem o ser humano.  

 

Paulo: Seu raciocínio é inventivo e instigante, meu amigo, mas ele me traz uma perplexidade nada pequena.  

 

Pedro: É mesmo? Qual?  

 

Paulo: Você já ouviu falar de algum efeito que não tenha uma causa? Eu, francamente, não. A causa deste banco de madeira no qual estamos sentados são uma árvore do bosque que margeia nossa vila e o trabalho dedicado do marceneiro. As águas que jorram desse belo e decadente chafariz são filhas – isto é, são consequências – da combinação imemorial de duas moléculas de hidrogênio com uma molécula de oxigênio. Elas são filhas das primeiras evaporações e das primeiras chuvas, assim como, no limite, somos todos filhos do Olimpo, segundo a teodiceia grega, e de Adão e Eva, segundo o judaico-cristianismo. Como não existe – isto é, como não pode existir – um efeito sem causa, a consequência primordial do cosmos, seu nascimento, pressupõe uma causa primeira, que eu acredito ser Deus. E mais: os astrônomos e astrofísicos citados por você com admiração aceitam como plausível, salvo engano, a hipótese de que o universo, tal como o conhecemos hoje, é filho de uma explosão primordial, o big bang. Para mim, Deus é a fagulha de tal explosão original, a causa criadora, que, por sua vez, não foi criada.  

 

Pedro: Pego carona na poesia de sua fé, velho amigo, e lanço mão de sua última expressão para meus próprios propósitos, isto é, para a minha própria excomunhão: “Deus é a causa criadora, que, por sua vez, não foi criada”. E se o universo, assim como o Deus em que você acredita, não tiver sido criado? E se o cosmos sempre tiver existido? Nesse caso, o big bang seria a explosão/recombinação da matéria que sempre esteve por aí, flutuando, se combinando e se entrechocando pelas galáxias. Diferentemente de nós, seres pequeninos dados à luz, o cosmos não teria causa primordial, já que seria fruto de combinações e recombinações casuais.  

 

Paulo: Não consigo conceber a vida sem um princípio.  

 

Pedro: Entendo você, velho amigo: não é fácil superar o luto geocêntrico do pai Ptolomeu para nos descobrirmos filhos bastardos e heliocêntricos de Copérnico. Mas a verdade é que a Terra não é o centro de nada, e mesmo o Sol, grandalhão diante de nós, não passa de uma estrela de segunda categoria que não consegue esfriar a cabeça. Somos pó de estrelas, e mesmo as Escrituras do judaico-cristianismo não conseguiram refrear de todo a torrente do niilismo: “Porque tu és pó e ao pó retornarás”.  

 

Paulo: Se já me é difícil pensar em efeitos sem causas, eu sinto quase vertigem ao tentar imaginar o que havia antes de essa matéria casual se combinar e recombinar. Será que, como narra o Gênesis, Deus pairava sobre a face do abismo? E, bom, se sou levado a pensar no que veio “antes” e no que vem “depois”, novamente me ponho a pensar em termos de causa (antes) e consequência (depois). Será que, em sua hipótese de universo sem criação e causalidade primordiais, não existe o espectro do tempo? 

 

Pedro: Existe, sim, sem dúvida, mas não como nós, pó de estrelas, o mensuramos. Antes de mais nada, é preciso dizer que, em termos astronômicos, nossos 80 anos de existência nesta Terra não passam de cócegas no dedo mindinho do pé de um bebezinho. Em face dos bilhões de anos de uma estrela, nossa insignificância temporal precisa ser consolada pela nossa já exumada irrelevância material. Isso posto, gostaria de mencionar uma hipótese de modelo para o universo que me fez ficar insone quando a conheci, uma hipótese que logra desconstruir as dimensões de “antes” e “depois” a que sua fé se aferra.  

 

Paulo: Que hipótese é essa?  

 

Pedro: A hipótese da fita de Möbius.  

 

Paulo: Nunca ouvi falar dela. De que se trata?  

 

Pedro: Antes de mais nada, eu lhe revelo o itinerário filosófico que me fez entrar em contato com a tal da fita de Möbius. Certa vez, li um devaneio do filósofo pré-socrático Anaximandro de Mileto que me deixou desnorteado: se considerarmos o universo um todo fechado, o que ficará no lugar do universo se esse todo se mover? (Depois dessa, eu fiquei imaginando se já havia bons uísques 12 anos à época de Anaximandro…) Então, ao conversar com um amigo físico há uns 10 anos, ele me disse que o modelo de universo proposto pela fita de Möbius consegue dar uma resposta para o nó górdio dado por Anaximandro em nosso imaginário. Senão, vejamos: em meados do século 19, o matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Möbius imaginou o universo como uma estrutura sem lado de dentro e sem lado de fora, a tal da fita de Möbius. Imaginemos uma fita longilínea – por exemplo, o papel de seda que você costumava usar para enrolar o seu fumo de corda. Agora, torçamos a fita longitudinalmente, cada ponta para um lado, e unamos a ponta de cima à ponta de baixo. Você consegue vislumbrar que resultado teríamos?  

 

Paulo: Imagino algo parecido com a pista de autorama dos carrinhos de brinquedo da nossa infância. Faz sentido?  

 

Pedro: Sim! A fita de Möbius é muito parecida com uma pista de autorama ou com o símbolo do infinito, à diferença de que, na pista de autorama como no símbolo do infinito, há uma parte exterior e uma parte interior, ao passo que, na fita de Möbius, não há “fora” e “dentro”, mas apenas uma única dimensão retorcida e espraiada ao infinito.  

 

Paulo: Algo como “o avesso do avesso do avesso”, como, certa vez, cantou o Caetano Velloso?  

 

Pedro: Se o indizível tiver nome, o sobrenome dele é fita de Möbius.  

 

Paulo: Então, se a vertigem que estou sentindo não turvou de todo a minha capacidade de raciocinar, é possível dizer que, segundo o modelo da fita de Möbius, não só não há “fora” e “dentro”, como também pode não haver “antes” e “depois”. É isso? 

 

Pedro: Bingo! Para nosso sistema de pontos cardeais e para nossa mensuração do tempo, faz sentido dizer Norte, Sul, Leste e Oeste, antes e depois. Mas, em face do cosmos incomensurável, como dizer que algo está “em cima” ou “embaixo”? Onde estaria a espinha dorsal para nos dar referência numa infinda e longínqua galáxia? E aí, como se já não bastasse a insignificância de nossa aritmética terrestre, a fita de Möbius ainda propõe um modelo para o universo em que o espaço-tempo desconstrói as nossas noções de “dentro” e “fora”. Você consegue perceber quão revolucionária é essa virada? 

 

Paulo: Estou tentando…  

 

Pedro: Para o Deus em que você acredita ser o criador do cosmos, Ele precisa estar “fora” e ser “anterior” ao que, “posteriormente”, formará o “dentro”, que é a criação. Mas, se o modelo de Möbius estiver certo, Nicolau Copérnico já não precisará se sentir tão culpado por ter nos tornado órfãos do geocentrismo. August Ferdinand Möbius será o novo iconoclasta, por séculos e séculos, amém.  

 

Paulo: Você se dá conta da expressão que empregou para sustentar a hipótese de Möbius?  

 

Pedro: Não sei se entendi aonde você quer chegar… 

 

Paulo: Você disse assim: “Se o modelo de Möbius estiver certo”. Isso me faz pensar que, a despeito de toda a sofisticação teórica e projetiva do niilismo de Möbius, nós continuamos diante de uma hipótese, isto é, diante de um rascunho imaginativo, um bebê que só faz engatinhar. Para se pôr de pé e caminhar com as próprias pernas, tal hipótese ficcional precisa ser provada e comprovada. Se não o for, ela permanecerá tão ficcional e mítica – eu diria mais: mística! – quanto o Olimpo grego e o Éden judaico-cristão. Então, mesmo que você esteja aí a torcer o nariz para minhas considerações, eu consigo discernir matizes mítico-teológicos em suas argumentações niilistas, como se eu estivesse entrevendo o fundo turvo e revolto de um lago através de águas plácidas e cristalinas.  

 

Pedro: Velho amigo, você já pensou em converter o Diabo à fé cristã? Creio que você ficaria podre de rico com tal empreitada.  

 

Paulo: Juro por Deus que eu estava para lhe dizer a mesma coisa, compadre: com seu canto de Circe, você poderia aposentar o flautista de Hamelin para, com um séquito infindo de ratos atrás de si, livrar a Europa toda da peste bubônica.  

 

Pedro: Se, neste momento, eu fosse um navegador, estaria em polvorosa: onde está o Norte desta nossa prosa sobre Deus como o princípio do cosmos? Minha bússola filosófica, tresloucada, já não consegue mapear o itinerário das nossas ideias. Afinal, conseguimos ou não conseguimos decifrar a cartografia das estrelas?  

 

Paulo: Guiados pelas estrelas para decifrar onde estava a manjedoura do menino Jesus, os três reis magos acreditavam que sim. À minha maneira (e não sem hesitar e duvidar), partilho tal fé. Você, por sua vez, parte da descrença radical para, ao fim, pregar uma nova fé. A princípio objetiva, sua certeza se torna subjetiva quando a serpente do Gênesis pica a hipótese de Möbius em seu calcanhar de Aquiles. E, como bem sabia Kierkegaard, quem tem certezas subjetivas tem fé.  

 

Pedro: Sendo assim, velho amigo, eu posso dizer, como João Cabral de Melo Neto, que eu sou ateu, graças a Deus. 

 

Paulo: Como entrevejo fissuras agnósticas em sua armadura ateia, compadre, é como se você ecoasse uma velha máxima de Tertuliano – “Creio porque absurdo” – e reinterpretasse um velho dito: em seu caso, o hábito talvez faça o monge. 

 

Pedro: Repito o que lhe disse há pouco, velho amigo: que tal converter o Diabo à fé cristã? Você ficará podre de rico!  

 

As gargalhadas fartas de Paulo logo se convertem em uma tosse vigorosa que perdura a ponto de ele cobrir a boca com um lenço quadriculado e a ponto de Pedro lhe dar tapas nas costas para ver se o amigo expeliria, de uma só vez, “o destino de que somos feitos”, conforme a dura expressão de Pedro diante do amigo a arfar.  

 

Braga (Portugal), 25 de abril de 2022

 

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber e psicanalista em formação, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor do romance O evangelho segundo talião (nVersos, 2013); do livro de ensaios e aforismos Tiro de misericórdia (nVersos, 2014); da tese Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018); do livro de ficções, crônicas e ensaios Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019); e do romance de formação em diálogos Metamorfoses: os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

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