Cultura

Desde o meio de outras línguas: uma conversa a partir de Desde o meio de uma língua, de Daniela Avelar e Patrícia Galelli | Lu Tiscoski, Ibriela Bianca Berlanda Sevilla

pego o livro espelhado e repenso as palavras de ordem, a crítica, a resenha. acho que te escrevo de dentro desse espelho, desde o meio de uma língua. o que guiará minha tentativa deve vir com a chuva de hoje, talvez uma garoa ou a voz dos peixes por debaixo do cimento da rua paulista que a patrícia me envia. a chuva aqui é vermelha e, como sempre, feminina. eu queria te contar do nome da alga que dá uma cor âmbar ao rio que nasce no morro das aranhas, corre as dunas da moçambique e deságua na conceição. tentei descobrir o nome da alga mas meu irmão, que consulto antes que ao google, disse que o rio está muito cheio com as chuvas e não dá pra ver as algas no fundo. ele precisaria pegar uma delas para analisar e desvelar seu nome dado pelo primeiro ao nomeá-la cientificamente. eu já ficaria satisfeita com o nome popular, tão mais bonito, na maioria das vezes. ele também não sabe, nunca ouviu. vou perguntar aos velhos da ilhota. logo volto com a informação. por enquanto, ficamos com o rio vermelho. 

 

ah, é tô na Finlândia 

o resto do tempo eu sei que estou em um outro lugar, mas é difícil descrever pois são muitas as dobras 

 

o que havia proposto era escrever sobre essa conversa de amor e ausências ou presenças de ausências desde o meio de uma língua da patrícia e da daniela. e o momento seria o café da manhã, despertar com muito café e trégua. tudo certo, tenho café e silêncio. os pés nas havaianas sem meias, e meio frios, apesar de março. há uma guerra feia acontecendo no mundo, há guerras e corredeiras de cruzes carregando mortes e memórias em todos os lugares. eu precisei falar de um lugar pra poder inaugurar uma língua nossa, assim como fizeram a patri e a dani (me tornei íntima quando quase senti o cheiro delas tomando café). então te digo, amiga, presença ausente, que falo do norte da ilha. um lugar que alguns dizem “é tão violento lá, né?”. e eu sempre me assombro com esse alerta. porque a casa do meu pai e seu viveiro de mudas é onde entro e encontro tudo aberto e cheio para todos entrarem e se fartarem, como se fosse uma casa do lado avesso, toda pra fora. e lembro de ti abrindo portais na praia moçambique à noite na fogueira como se inaugurasse outra dobra no tempo, a dobra ilusória de um novo ano cheio de barcas. sobre os objetos na minha casa onde tu apareces eu também queria falar só um pouco, porque um deles me olha agora, e tem a bunda apontada para o norte, como reza a crença peruana. outro está aqui no fogão a lenha e me faz recordar o rebolado redondo da bunda gorda da tua mãe que com braços fortes revolve a polenta. 

 

a presença da ausência é como um silêncio possível de ouvir na imagem. nos recortes de imagem dos seus objetos há silêncios de vários volumes 

algo assim.

 

 

19:20 27°C

 

no livro espelhado vejo a outra de mim que é você. aqui, parece que ainda vivo nessa dobra do tempo aberta ao leste da sua lembrança: venho do viveiro de mudas com terra debaixo das unhas, “aqui habito uma casa que não é minha”, diz a dani, e, de seu modo finlandês de despertar, como ovos no desjejum. só consigo pensar nessa constante ausência da presença que a dani e a pati confessam. e na urgência de trocar a pele, ainda que esse processo implique estar do avesso. 

 

tenho ensinado aos meus alunos da profundidade das palavras e de seus avessos. eles já sabem o que significa a presença da ausência e o paradoxal que é esse sentimento. 

 

fico pensando nos longes entre nós quatro (eu, você, a pati e a dani) e nas medidas que nos aproximam, e no quanto periféricas estamos do centro dessa língua que nos faz amar, que nos é asilo. será a nossa medida de amor uma garrafa cheia (de vinho)? porque mesmo sem querer, nossa amizade foi muito mais vista pela noite do que pelo dia e é um tanto fumê minha imaginação quando você me leva de carona pelo caminho do itacorubi ao estreito, ou no caminho de volta para o rio vermelho pela lagoa; o som dos carros e dos ônibus têm essa cor fumê, a cor lagoa da conceição. será que a nossa medida de amor é a distância entre um ponto e outro que embarco na tua voz? será a distância sem medida que experimentamos, você com a sua e eu com a minha garrafa de vinho? 

 

será que criar medidas sem medida ajuda a (des) entender um pouco melhor as coisas? 

 

acho que esse ano é você que está conseguindo “perceber devagar” as coisas, como que em suspensão. aqui, no oeste só consigo essa façanha quando te encontro na área de broca. nesse momento (e talvez em outros de alucinações com a crueza da realidade) percebo tudo que é familiar como uma novidade. e entrar no centro dessa língua tem um gosto tão singular, o de estar suspensa talvez, como se fosse a primeira vez que nosso amor se transformasse em palavras. 

 

e aí que todo meu amor está tão oco, habitável, sólido, múltiplo dentro do outro (…)

 

 

eu já não sei muito de vinhos e de estradas, amiga presente. temo não atingir nunca mais a euforia que vibrava nas maçãs do meu rosto a cada gole de vida. e sobre as estradas, há muitos buracos nos asfaltos, meu carro não tem ar condicionado, tenho medo de entrar em ônibus – os besouros poluentes pandêmicos – e tudo gira rápido demais. foi tão doce quase te ouvir dizer que neste ano estou conseguindo “perceber devagar” as coisas. sinto mesmo não ter capacidade de correr atrás da velocidade das gentes, da tal lógica do desempenho. eu me arrasto e viro abóbora. ah sim, quero te falar da língua das abóboras. mas vou começar no ovo. a patri me trouxe imagens, uma conversa toda textura. primeiro foi o branco da caveira herói da anna maria maiolino e eu lembrei aquele branco opaco que só o ovo da maiolino tem. e isso me fez lembrar uma conversa nossa, quando te falei da sociedade da transparência e de como a terra guarda mistérios e verdades porque é sólida, a solidez impenetrável dela oculta as histórias perdidas pela História. enquanto no mundo digita, não há negatividade, é tudo transparente e acessível. foi o byung- chul-han que me trouxe essas coisas que já transformo em outras quando te encontro tão na terra. da maiolino fui até yayoi kusama e te vi com uma longa trança rabo de escorpião bailando e cantando a língua das leguminosas ao som das pumpkins multicores da kusama. a patri também me fez ter muita vontade de te falar do andy warhol e dos borrados do real nos acidentes dele. também da tela “dos cabezas” do basquiat, pensando que quando eu puder estar de frente pra ela precisarei de um banquinho pra ficar lá por uns dias acho. mas não, eu sei que desbordo, minha fala é sempre um remendo de fragmentos desconexos e deslumbrados. ia te falar do documentário do andy porque os anos 80 me pareceram de uma dor irrepetível e de uma melancolia tão minha… o byung-chul-han também fala em outro livro do filme melancolia do lars von trier. ele traz uma tela do bruegel, “os caçadores da neve”, que transfere os espectadores a uma melancolia invernal profunda. precisamos assistir a esse filme juntas, com vinho. eu não me importo de soar prolixa ou prepotente quando falo contigo, não me importo com a lógica do desempenho. o chul-han escreve: “o eros é precisamente uma relação com o outro, que se radica para além do desempenho e do poder”. vamos fisgar da neve da melancolia os instantes que insistem em nos abandonar. envolver essas migalhas quase mortas com o erotismo das nossas palavras uma para a outra, e já não sou capaz de medir nada, não há medidas. embora café vinho ou ovos além da medida possam ser prejudiciais. 

 

eu e você tentamos perceber devagar, como um gelo que se conserva num quintal que neva. 

mas o gelo, ao contrário, sempre esteve sobre o asfalto de um país tropical em plena temporada de verão 

 

você falou sobre suspensão e penso que talvez seja como fixar a queda em uma imagem 

 

outra imagem da “ilusão fragmentada que a vida é” me veio com uma das quedas de bas jan ader que a dani insiste em colar de volta na parede. eu busquei na memória de cinquenta anos, entre louças quebradas e alguns mortos, o mergulho no vazio do yves klein, de 1961. sobre a performance ele teria dito duas palavras, medo e terror, pronto para mergulhar no vazio no ano de 1946. era do pós guerra que ele falava, ecoando ainda nos 60 e hoje. há de novo e sempre uma guerra que na verdade nunca finda. deslumbrada e azulada que às vezes sou, queria estar mesmo agora contigo no ano de 1957 quando o yves klein lançou nos céus de paris 1001 balões azuis. amanhã, ou daqui a instantes, talvez queira contigo uma cerimônia com os xapiri da floresta. e pode ser aqui mesmo no morro, lugar de difícil acesso. 

 

 

19:32 22°C 

 

amiga, nem sei porque insisto em anotar a hora e a temperatura ao te responder; um pouco mais tarde, um pouco mais frio. é só pra te dizer que te respondo desde o meio da minha biblioteca. sempre quis dormir dentro da biblioteca, e depois de muito tempo, quando desatei nós, aqui estou; desde o meio material de uma língua que inventamos e por onde nos intrometemos. essa sua fala de montagem, de colagem, me joga pra lá e pra cá no tempo. dos melancólicos e bregas anos 1980, ano que me viu nascer, depois pros 1940 e pros 1950, e sempre num pós e durante bombardeios de todos os lados, porque a guerra não acabou, não acaba.

 

tanto ir e vir me fez um pião que gira sem parar em um eixo vazio. enquanto percebia, recebi um email que encerrou assim: me encontra na geografia? 

 

fiquei muda no mesmo lugar por um dia inteiro. 

 

mas eu sempre tento sair da impossibilidade de falar, esse choque no vazio da linguagem provocado por horrores, migalhas e mortes. prefiro emudecer pelo êxtase, aquele de sor juana ines, que você me contava; nossas conversas sobre bataille, e aí lembro de um poema lindo da orides fontela intitulado justamente… 

Eros 

 

Cego?  

 

Não: livre 

 

Tão livre que não te importa a direçao da seta.  

 

Alado? Irradiante.  Feridas multiplicadas nascidas de um só  

  abismo 

 

Disseminas pólens e aromas. 

És talvez a  

  Primavera? 

Supremamente livre 

  – violento –  

não és estátua: és pureza   oferta. 

 

Que forma te conteria? 

Tuas setas armam  

   O mundo enquanto – aberto – és abismo  Inflamadamente vivo.  

 

agora sou bicho da terra. vivo o tempo, a temperatura, a humidade do ar e o eros que vejo explodindo em cada flor que abre, murcha e morre. Já nem sei dizer dessa força motriz que “arma o mundo”, estou do avesso. 

 

depois de tanta língua, tanta figura, e geografia, sinto vertigem. vejo tudo que me mostras, tanto e tanto que giro, giro, até não ver mais nada, até entrar no não-saber e emudecer. 

 

 

a última parte da nossa conversa me parece a mais difícil. não quero parar mais, não faz sentido interromper essa língua assim no meio. e acho que por isso demorei pra começar a escrever. tudo ficou suspenso sobrevoando o teto do meu quarto biblioteca como a fantasma amada da toni morrison. tu havias me falado que o fantasma é um fragmento. acordei noite passada às 3:08 pra escrever coisas que me fragmentavam de dentro de sonhos. pensei na temperatura dos sonhos, acho que é sempre morna com ondas de calor intenso quando há visitação de fantasmas do pesadume. transportei o sonho dessa noite pra nossa conversa, das 3:08 até agora, 10:50 no mesmo quarto biblioteca. e na janela surge uma névoa morna que evito olhar como monotonia. no sonho eu recebia um e-mail com a imagem de um cachorro branco que tinha no lugar das patas traseiras pernas muito brancas de mulher com joelhos virados pra cima e sapatos vermelhos scarpin salto alto. o cachorro saía andando de dentro da tela do meu note branco arrastando as pernas inanimadas e os saltos dos sapatos faziam um ruído enquanto deslizavam pela mesa. tenho sonhos bem surrealistas. alguns são dimensões do medo, e aí sinto o sangue correr e doer um pouco nos antebraços e o peso de cimento nas veias me impede qualquer movimento, até respirar fica difícil porque o cimento entra nos alvéolos e também nas pálpebras, os olhos reviram muito até se libertarem e tudo ir voltando ao normal aos poucos no fio da funâmbula. mas na verdade, eu queria te falar de um pensamento sobre essa língua que é a dos sonhos. alguma vez já conseguiste capturar a língua naquele limiar entre o sono e a vigília? é desconexa e até meio engraçada. como essa que inauguramos sem qualquer compromisso com nossos censores internos. teve uma época que pensei que o medo de ficar louca iria acabar me deixando louca. eu pensava muito no limiar entre o consciente e o inconsciente como uma fronteira que se atravessasse pra loucura. é muito fininha essa pele que separa os dois mundos, como aquela pelezinha que envolve o ovo. dizem que é muito nutritiva. acho que nossa língua habita esse tempo-lugar da pelezinha porosa do ovo, entre a clara polpuda e branca e a casca dura quase cortante dos dias. 

 

às vezes a nuvem fica carregada, geralmente depois de um dia lindo de sol da ilha de santa catarina 

 

penso em amornar as coisas como tornar mais confortáveis e não como sinônimo de monotonia 

 

 

16:14 24°C 

 

sim, teremos que encerrar nossa conversa e essa resenha. tenho o péssimo hábito de não aceitar os finais; busco a eternidade nas coisas… o fim não faz sentido para quem ama. mas amiga, fui dormir e sonhar pra te escrever essa resposta; uma tentativa de transformar pelo invisível e capturar a língua-limiar de que você fala, no instante lusco-fusco quando os olhos já não conseguem se manter abertos, quando então tudo se transforma em cerração – é como chamamos a neblina aqui no oeste – não é a mesma neblina que turva os olhos de riobaldo; até que poderia ser, já que estamos falando de amor, de lonjuras…de saudades. 

 

quando me pergunta sobre o amor e as temperaturas te respondo desde o meio da neblina 

do vapor ou do 

nevoeiro 

 

já nem sei mais quem fala aqui, se a pati, se eu, se a dani, ou se é você, pela minha voz de letra; nesse meio torvelinho de nós, amigas enlaçadas pelas distâncias, refletidas no espelho uma da outra, perdidas nas “propostas de encontro”, nas promessas de falarmos tudo mais, terminarmos essa conversa de perto, sem a interferência da palavra escrita… dizer causos e poemas no idioma que nos der na telha, na língua da praia ou na língua das abóboras, dos ovos e das artes, e das colagens, e dos vinhos… 

 

o que quero é deixar esse papo sem fim, como um espelho que olha para o outro. 

 

desde o meio de uma língua, de Patricia Galelli e Daniela Avelar, foi publicado pela EditoraEditora em 2022.

 

 

Legenda “Desde o meio de outras línguas: uma conversa a partir de Desde o meio de uma língua, da Daniela Avelar e Patrícia Galelli_4”: fotografia de Ibriela Bianca Berlanda Sevilla

 

 

 

 

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Fotografia de Lu Tiscoski

Fotografia de Ibriela Bianca Berlanda Sevilla

Luciana Tiscoski é jornalista e escritora. Dotora em literaturas (UFSC) e pós doutora em Artes Visuais (UDESC). Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca, participa dos livros Abrasabarca, (Medusa, 2018) e Revoluta, (Caiaponte, 2019). Lançou o conto Uma menina gorda, pela Editora Butecanis, e Área de broca, seu primeiro livro individual de contos, pela Editora Nave, ambos em 2021.

 

Ibriela Bianca Berlanda Sevilla é Doutora em Literaturas (UFSC), professora de lingua portuguesa e literaturas, trabalha em projetos culturais ligados ao incentivo à leitura. Participa do coletivo de mulheres poetas Abrasabarca com quem tem dois livros publicados, Abrasabarca, (Medusa, 2018) e Revoluta, (Caiaponte, 2019). Lançou seu primeiro livro de poemas Mínimo Tratado da Paixão em 2021 pela editora Urutau. 

 

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