Cultura

Deriva: palavra sem lugar | Jorge Elias Neto

Uma crônica aforístico-poética

Não sou eu quem me navega,

Quem me navega é o mar.

É ele quem me carrega

Como nem fosse levar.

Paulinho da Viola – Timoneiro

Sou um poeta pretensioso.

Meu desejo não é deixar registrado

um poema. Quero que meu legado                                                                                                                                          

                   seja uma palavra.

 

Eu poderia sair por aí em busca de descaminhos, talhando amenidades. Mas é tempo de pandemia e de palavras ditas tantas vezes que nos deixam exauridos, sem forças, sem rumo, enlutados por estar.

 

Sempre achei que a busca de palavras enxutas, de frases curtas, é um mote existencial, uma fissura, quase uma pulsão de vida na criação de instantes.

 

Considero que certas palavras, ou frases, como a “Máquina do Mundo”, têm dono. Como revisitá-la depois de Drummond. Como cantar algumas músicas eternizadas por Elis Regina? Como falar da peste após Camus?

 

Mas são as palavras que nos acham…

 

Dois meses antes de a pandemia iniciar, eu estava admirando o pôr do sol, quando um diálogo entre uma menina e seu pai me chamou a atenção.

 

Ela disse: Pai, sabia que o mundo veio do reto?

 

Pronto, isso é a beleza. Sem querer, aquela criança colocou seu carimbo de posse na palavra “reto”. Naquele momento de elevação espiritual eu mal imaginava que palavras como reto, plano, terraplanismo, viriam ocupar nossas discussões diárias, manchando a beleza que ouvi naquela tarde.

 

Os filósofos pré-socráticos e uma gama de polímatas ao longo da história labutaram, tentando calcular a quadradura do círculo. Chegaram ao famoso π (3,14159…), que nos levou ao ∞ (parece que um cientista conseguiu estabeler um final para esse número irracional… na casa dos trilhões). 

 

Mas hoje isso não interessa, tornou-se anacrônico. O legal é discutir a quadradura do Mundo. Voltar aos tempos antigos, aos tempos do “Baudolino” de Umberto Eco, tempos de mitos, de algo que antecede Ptolomeu. Lembremos que o modelo geocêntrico para o universo já era adotado pelo filósofo Zaratustra, lá nos rincões do século 6 aC…

 

Voltei-me para o mar, para o guiar-se pelas estrelas, astrolábios, sextantes, bússolas… O mar desafiador dos nórdicos, dos fenícios. O mar austral temido pelos antigos. O mar de nossas costas, navegado primeiramente pelos irmãos Pizon (diz-se que chegaram à costa norte do Brasil no mês de janeiro de 1500) e posteriormente pelos portugueses. 

 

Uma das hipóteses diz que o acaso e as alterações climáticas e eólicas foram os responsáveis pela descoberta do Brasil; outros dizem já se saber de sua existência (essa Cipango ao sul do Mundo conhecido).

 

E ocorreu-me a palavra deriva, essa palavra sem lugar. Onde a própria utilização no contexto matemático nos lança no absurdo do nada, este aforismo sobre os afogados.

 

Conforme me explicou o amigo e linguista José Augusto Carvalho, a palavra deriva vem de rivus, rio, da mesma família de rival.

 

Rivu-. com a queda do v, como acontece com consoantes sonoras entre vogais (pede > pé) deu a palavra rio e outras palavras como riacho, derivar, rival… dizem que os habitantes das margens de um rio eram chamados rivais. Como viviam brigando pelo direito de pesca, rival passou a significar inimigo. A semântica muda, mas a raiz da palavra se mantém.

 

Eis a palavra que tento capturar. Uma nau à deriva. Uma nação à deriva.

 

Um povo habituado a ser médico, louco e treinador de futebol, viu-se à deriva em um mar de informações desencontradas. Viu-se no meio de uma “tempestade perfeita”. E um redemoinho riobaldiano, contaminado por partículas viróticas, catando os náufragos.

 

(…) mar não tem cabelos que a gente possa pegar

 

 Percebeu, assustado, que a redoma do “paraíso terrestre” não é intransponível. E essa fresta criada fez vir à luz um lado obscuro dos que anseiam “estar” no Mundo em detrimento do “ser”.

 

O ser humano virou uma variável numérica, e a vaidade, somada às “verdades absolutas” dos extremos, tomou do leme. 

 

No alto do mastro central da nau sem rumo, homens de olhar míope acenaram a direção dos rochedos.

 

Vivemos um tempo de desperdícios e bandeiras. 

 

No comando da nau decapitada temos um timoneiro cuja boca não veste bem as palavras. Alguém que ignora que o ódio não é fonte, é desperdício. Alguém que vive do desmanche das mãos unidas. Alguém que terá sua biografia escrita por um psiquiatra. 

 

Sim, foi nesse momento caótico que fomos colhidos pela pandemia. 

 

E o “primeiro entre os únicos” reivindicou o direito de exclusividade sobre a verdade. O que ele e muitos outros ignoram é que a ciência é um divino manancial de verdades fluidas e dúvidas eternas.

 

 

Confesso que adoro as reticências… Elas dizem do inacabado e das dúvidas…

 

 

E da metáfora “mar”, passamos ao torrão molhado de terra, pois, no Brasil de hoje, tanto o chão quanto o naufrágio são umidades sem esperança. 

 

                                Deriva é palavra sem lugar.

 

Olho em torno e vejo um tempo de consequências ignoradas e oportunidades perdidas. Vejo, indignado, que se desconsidera que a vida é uma potencialidade da consciência. E essa singularidade é algo ignorado por números, por estatísticas e, pior, pelos carentes de empatia. 

Mas a autossuficiência arrogante, a viseira do “sábio”, IMPOSSIBILITA o diálogo.

 

 

E tudo culmina em um crescer exponencial do número de mortes, de sequelados.

 

Olho para o nosso País e não identifico, entre os destroços consequentes de tais atitudes extremas, nenhuma sombra de dúvidas. Tudo atende ao propósito do ser egoísta.

 

E os outros? E nós, os que seguimos vivos?

 

 

Pergunto: sabe quando o fervor dos fanáticos se torna entediante? Se sabe, é porque eles atingiram o objetivo de minar sua capacidade de se indignar.

 

Somos testemunhas, e nossas desculpas, muitas das vezes, são as viseiras do hábito.

 

Se percebermos o grau de insignificância a nós atribuída pelos que disputam o poder, entenderemos o quão insensata e imprudente é a postura sectária e de ódio que temos adotado quando discutimos o nosso País.

 

Sei que a ética e a responsabilidade não provocam unanimidade. Se muito, geram discursos hipócritas quando confrontados com as atitudes de muitos que as professam.

 

Não vejo alternativa. É hora de a mão esquerda se ligar à mão direita e, juntas, se reconhecerem parte de um mesmo homem e de uma mesma batalha.

 

Lembremos que a Morte é zelosa em sua força. O mesmo podemos dizer do vírus.

 

A sombra tomba sobre a terra ao sentir o fascínio do Sol.   Ela é a experiência diária da morte, o ato introdutório do homem no esquecimento.   A sombra sinaliza ao homem o poder da luz que não nos deixa esquecer que estar de pé é uma circunstância, uma transitoriedade.

 

 A sombra é a seta que o céu projeta sobre a soberba da consciência bípede.

 

E estar à deriva é um mote que não atende ao nosso povo. Atende sim aos interesses dos que não se importam com o sofrimento dos seus iguais.

 

Que cada um tome consciência de sua irrelevância relativa, de seu papel como ser político, de sua responsabilidade social, de seu dever de amar o privilégio da consciência.

 

O navio à deriva espalha as águas, derrama os náufragos, mas ele passa, e as águas se juntam, não agora em torno de um homem que nada tem de louvável. As águas se tornam um todo, um caudal de força e esperança. 

 

As águas se juntam e trazem de novo às nossas praias a poesia esta paz entre os escombros, entre os ossos, à deriva no nada.

Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, poeta, médico cardiologista e membro da AEL. Tem publicados os livros: Verdes Versos (Flor&Cultura, 2007); Rascunhos do absurdo (Flor&Cultura, 2010); Os Ossos da baleia (Prêmio SECULT-ES, 2013); Glacial (Patuá, 2014); Breve dicionário (poético) do boxe (Patuá, 2015); Cabotagem (Editora Mondrongo, 2016); O ornitorrinco do pau oco (Editora Cousa, 2018) e Sonetos em crise (Editora Mondrongo, 2020).

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