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Contos

Antes de cair o pano

 

Decidimos pelo nome assim que soubemos que era menino. Alarico seria, que Alarico significa “dono de tudo e de todos, poderoso, amante da liberdade e das aventuras, grande governador”. Era em coisas assim que pensávamos enquanto a barriga da minha mulher crescia. Isso aconteceu há muito tempo, não sei dizer quanto. Talvez uma vida inteira. Quanto tempo dura uma vida inteira?

 

***

 

O que primeiro me desperta pela manhã, em todas as manhãs, é o ronco do meu estômago, como se dentro de mim houvesse uma ratazana nervosa e faminta. É o lado mau de ter pouca comida à disposição. O lado bom é que consigo manter a forma delgada que sempre almejei. Cada estilo de vida tem suas vantagens e desvantagens, e a diminuição do que se come não representa necessariamente uma calamidade que deteriore a existência de quem quer que seja. Acostuma-se a tudo, até às coisas ruins. Sempre que meu cérebro produz raciocínios desse tipo, sou assaltado pela mesma suspeita: estou tentando me consolar. Às vezes consigo, mas não é sempre.

 

Toda pessoa é uma máquina de buscar consolo, não importa em que circunstância se encontre. Esta manhã faz frio, demasiado frio. Aprendi a respeitar a importância da temperatura exterior. Tenho mantas e roupas de abrigo, mas já percebi o quão pobre são essas defesas contra o tempo ruim. Cobrir-se com uma manta ou vestir-se com muitas roupas atrapalha as atividades necessárias do dia. Penso numa delas. Se quero tomar um chá quente, por exemplo, e acalmar a ratazana que me rói as entranhas, preciso verificar se tenho lenha disponível e, caso não tenha, terei que ir até o bosque para buscá-la. Posso utilizar o que me resta de madeira na casa onde moro, como fiz em outra ocasião, por simples comodidade. Já queimei os objetos mais supérfluos de que dispunha e hoje resta-me ao menos a consciência do quão estúpido seria queimar a mesa onde faço as refeições, a cadeira em que me sento ou o aparador que uso para guardar os poucos mantimentos. É com esses pensamentos que, rendendo-me à circunstância, me abarroto de roupas e saio no ar gelado para buscar lenha.

 

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Eu chegava sempre de manhãzinha à UTI do Hospital Santa Helena, não falhava um dia. Também não queria perder o momento em que, por um segundo, ele abrisse os olhos. Eu só podia vê-lo por trás do vidro, mas queria estar presente nesse segundo. Alarico estava numa incubadora e nada nele se movia, além de sua barriga, que subia e descia de maneira quase imperceptível. Tinha um tubo preso numa artéria de seu bracinho, ligado à sua traqueia e a um respirador. Havia também muitos eletrodos pregados por todo o corpinho do meu filho, todos ligados a vários aparelhos. De vez em quando um desses aparelhos emitia um som, um sinal agudo, e um médico e duas enfermeiras corriam até a beirada da cama para interromper o barulho e ver como estava o meu Alarico. Era desesperador, mas era alentador também, pois só se tinha segurança de que ele seguia vivo quando se temia que estivesse morto. 

 

***

 

A caminhada até o bosque não exige de mim grande esforço. Levo vinte minutos na ida e dezenove na volta — o regresso é uma descida. Esse é o tempo que marquei quando meu relógio ainda tinha bateria. Também decorei o tempo de outros percursos, como ir à venda do Saturnino buscar mantimentos, fósforos e velas: uma caminhada de trinta e nove minutos, na ida e na volta, já que a estrada é uma reta plana. Imaginei que me seria útil saber o tempo gasto em meus deslocamentos para administrar o tempo e a energia necessária para quando estivesse muito velho ou muito fraco ou à beira da morte. Ou para quando estivesse para perder a memória, naquele ponto em que a gente não reconhece nem a própria mão — mas aí nada mais importaria. O que tem importância agora é a minha disposição para ir e vir, que depende da temperatura e das estações do ano. Ainda conservo minha tolerância ao sol, sob o qual passo algumas horas por dia para que o calor entre no meu corpo e me reabasteça de força e vitamina D, ainda que acentue as marcas já muito fundas do meu rosto. O mato, onde agora moro, oferece oportunidades assim.

 

Também aprendi a contar as horas observando a posição do sol da soleira da porta de entrada, quando há sol. Quando não há eu não procuro saber que horas são, só sinto que passam, e é bom que seja assim. A noite serve para poucas coisas. Além de dormir, pensar e recordar, é na escuridão que me dou conta de que ainda tenho desejo e, vez ou outra, me alivio sentado na poltrona forrada com algodão encardido. Até há poucos meses eu me esforçava para ler, mas minha vista foi se deteriorando e agora já não é fácil decifrar palavras e frases à luz de velas. O fato é que, na verdade, a leitura não me apraz como antes. Minha biblioteca também já não é a mesma de antigamente. Com o passar do tempo, e com a preguiça de ir ao bosque buscar lenha, vários livros alimentaram o fogo que me aqueceu em outras noites de inverno. Eram livros que, de tão lidos, tinha-os gravados em minha memória, como as novelas de Kafka, os poemas de Augusto dos Anjos, a Lavoura de Raduan e Pedro Páramo. Há outros também que viraram cinzas e ainda ardem em minha memória, como os que um dia escrevi.

 

Agarro-me às lembranças do que já li em vida com a força de um náufrago que segura um pedaço de madeira, sabendo que isso é tudo o que ele tem, esse pouco é o que lhe salvará da morte na água profunda. Assim é minha vida, assim é a vida que levo desde que, há muito tempo, deixei a cidade e me isolei num canto desconhecido deste mundo — porque já não suportava mais a mesquinharia, o egoísmo nem a autodestruição inconsciente do ser humano. E também porque tive o Alarico, e ele não existe mais. Existiu pouco, questão de dias. A tristeza foi insuportável. E a dor — nunca pensei que a dor fosse parecida com o medo, mas é. Nenhuma cidade, nenhuma casa luxuosa em bairro idem seria capaz de conter e acolher a tristeza e a dor que se instalaram dentro de mim, sem prazo para se retirarem.

 

Sozinho, no meio do mato, com o suficiente para sobreviver, estou muito melhor. Quando se abraça a solidão pela primeira vez, ela é abraçada para sempre. É quando nunca mais olhamos no espelho. Não tenho mais nada a não ser a solidão e os presentes que ela me traz: o silêncio, o não ter que falar nada, o não ter que explicar coisa alguma, o não ter que justificar o que quer que seja. O não ter que ouvir.

 

***

 

Para poder morrer, Alarico tinha que estar vivo. E ele tentou, com toda a força que tinha. Viveu quinze dias, duas horas e sete minutos. Esse tempo foi a sua vida inteira.

 

Tarefa dificílima foi achar a raiz do acontecimento, descer as cortinas para que nenhuma luz entrasse, que aqueles não eram dias para se apreciar a luz, mas para dar-se conta do fato de que você permaneceu, quando o outro que se foi é que deveria estar vivo. Você permaneceu para testemunhar a vida e enganar a morte — que já tinha levado o seu quinhão, não precisava ceifar nenhuma existência mais. 

 

Ali ficamos, homem e mulher sozinhos, vulneráveis, agarrando-nos ao vazio, a uma casa que de repente ficou grande demais para dois e os dois girando numa espiral em alta velocidade sem coragem de olhar um nos olhos do outro.

 

Vir para o mato, isolar-me para entender e para tentar curar a dor e a tristeza foi a solução que mais se aproximou do que minha mente e meu coração pediam. Vim. Aqui estou, há muitos anos acostumado. Nenhuma certeza. De certo mesmo, só o rio que corre sem parar aqui ao lado.

 

***

 

Há muitos meses não aparece ninguém pela redondeza. Serei o último homem vivo no raio de muitos quilômetros? 

 

Numa de minhas visitas ao Saturnino, muitos meses atrás, ouvi dizer sobre uma pandemia que andava assolando a população das cidades. Devia ser uma doença arrasadora, ou está sendo ainda, não sei. Enquanto caminho de volta para casa, segurando nos braços a lenha que catei no bosque, penso no sofrimento das pessoas que perdem o viço e a saúde num virar de ponteiro de relógio. Penso em Alarico. Penso também que meu último amigo não estará lá na soleira da minha cabana, vendo-me chegar carregado de troncos e galhos secos para o fogão. No trajeto passo perto da cruz que marca o local onde ele está enterrado e olho. Eu mesmo o sepultei. É nele que também penso na volta para casa: em Cassiano e em sua ausência. 

 

***

 

Hoje faz dois meses que Cassiano morreu. Foi uma ironia do destino que eu o tenha sepultado, e não o contrário, já que ele era muito mais jovem. Costumava criticar minha preguiça e minha falta de jeito para executar algumas tarefas para as quais ele estava sempre pronto. Segundo me disse um dia, tinha vivido desde criança com a carência de tudo e se acostumara a criar jeitos e maneiras de contorná-la para não morrer de fome, sede ou frio. Dizia que nunca tinha comido mel, mas tinha posto os dentes nas abelhas. Conversávamos bastante, principalmente à noite, aquecidos ao lado da lenha queimando no fogão.

 

Lembro-me dele com sua pele de um negro retinto, seu tamanho avantajado, o olhar penetrante, o sorriso malandro, o sentimentalismo despejado que o fazia contar histórias de sua vida com os olhos úmidos. Hoje compreendo que, sem ele, sem sua astúcia e prontidão, seria difícil impedir e espantar os visitantes indesejados e ladrões que de vez em quando rondavam a casa. Cassiano tinha conhecimentos sobre como utilizar a natureza a nosso favor, sem destruí-la ou torná-la estéril, e assim prolongar nossa existência e nossa saúde.

 

Acolhê-lo foi a melhor decisão que, àquela altura, tomei em minha vida: quando vi seu rosto brilhando de suor no outro lado da cerca, com os olhos parecendo os de um animal assustado, eu, com a espingarda em punho, estava a ponto de lhe dar um tiro como já fiz com outros forasteiros intrusos, mas me contive. Deixei que se aproximasse da casa. Eu estava de olho nos dois galões de gasolina que ele segurava nas mãos. Roubados num posto em que ele trabalhava, assim me contou depois. E combustível é valiosa moeda para trocar por mantimentos.

 

Resolvi aceitar a gasolina dele em troca de um pouco de comida que eu tinha acabado de cozinhar, sem deixar de apontar minha espingarda na direção dele. Num minuto em que me distraí, Cassiano conseguiu se apoderar de minha arma e me sujeitou no chão, apontando para meu rosto. Seu instinto de sobrevivência de moço acuado desde cedo, mais sua agilidade de homem novo, fizeram com que levasse a melhor sobre mim. Tudo poderia ter acabado naquele momento, mas Cassiano começou a falar propondo um novo trato, indo além da troca de gasolina por comida. Propôs que fôssemos amigos, que a cidade estava tomada por uma epidemia e que ele não tinha onde morar. Que gostaria de viver no mato, num lugar saudável, longe da poluição dos centros urbanos. Que aqui haveria isolamento e o vírus não se atreveria. E que ele era uma pessoa inofensiva. Aceitei.

 

Quando disse que estava de acordo, Cassiano me devolveu a espingarda num gesto de generosidade e me ajudou a ficar em pé. Indiquei com a cabeça um colchão velho encostado numa das paredes. Seria sua cama. Desde esse dia estivemos juntos na execução de tarefas e na manutenção da casa. Compartilhamos esforços, recursos, habilidades e esperanças para seguir com nossa vida a tudo alheada. E contamos histórias um para o outro, dividindo um copo de vinho barato e uma perna de cordeiro recém-assada. Falei sobre Alarico e seu curto tempo de vida. Ele não disse nada, mas vi o brilho de seus olhos marejados.

 

Ficamos grandes amigos e aprendi muito com ele: a buscar comida na natureza ao redor e como prepará-la, a reutilizar qualquer desperdício, a saber o tempo exato do cozimento de determinados legumes, a plantar baunilha e dela extrair o sabor mais doce, a não comer mais do que o corpo necessitava para se manter vigoroso. 

 

Havia noites em que nos aliviávamos juntos, cada um em seu canto, distantes um do outro. Eu ouvia seus gemidos baixinhos e entrecortados e percebia os movimentos de sobe e desce de sua mão. Logo depois ele dormia.

 

***

 

Cassiano. A febre da pandemia o pegou e o levou embora sem que eu pudesse fazer qualquer coisa para salvá-lo. Aconteceu poucos dias depois de ele voltar da venda do Saturnino. Não havia médico perto de onde vivíamos e, mesmo que houvesse, eu não poderia deixá-lo sozinho para chamar um. Apesar de seu tamanho, Cassiano se foi como um passarinho: quieto e sereno e silencioso. Eu ainda não tive a febre, mas sei que isso não tardará a acontecer.

 

Tive tempo para aprender com ele o significado da verdadeira amizade, aquela que nasce da certeza de que a sorte de um é a dos dois. Aquela que nem ele, nem eu, nem tantos outros como ele e como eu, tínhamos sentido em algum momento da vida, quando, no passado, vivíamos naquilo que chamávamos de mundo estreito e sem alma. 

 

Por seu porte avantajado, tive que levá-lo num carrinho de mão até o local onde iria sepultá-lo, no caminho do bosque. Pus na cabeceira uma cruz com seu nome. Plantei flores em volta.

 

Há muitos meses não aparece ninguém pela redondeza. Serei o último homem vivo no raio de muitos quilômetros? 

 

***

 

Para poder morrer, Alarico tinha que estar vivo. E ele tentou, com toda a força que tinha. Viveu quinze dias, duas horas e sete minutos.

 

Isso é só para os fortes. Não é para qualquer um. Não foi para mim.

 

***

 

Entro em casa com a lenha nos braços, faço fogo e preparo um chá de folhas verdes variadas de que Cassiano me ensinou a gostar, substituindo o café, que já não há mais em casa. Puxo uma cadeira para perto da janela e sento-me ali, bebendo e olhando o dia passar. Lembro-me de mim.

 

Depois de tantos anos — desde aquele entardecer com cheiro de comida, sem Alarico e com minha mulher machucando o próprio corpo para ver se sentia mais dor do que a que experimentava pela perda do filho, e desde aquela noite sem sonhos e sem sorte, quando decidi me afastar de tudo o que se referisse à civilização —, as lágrimas não correm mais dos meus olhos, porque meu coração secou. Tornou-se pasto, campo ermo desprovido de plantação. Alarico era a ausência mais sentida naqueles dias. Eu só queria ir para bem longe dali. Para o mato.

 

***

 

Se alguém passa muito tempo distante de tudo, no meio da floresta, aprende a conhecer e a distinguir o silêncio, que sempre antecipa o pior. Mas não só nos lugares isolados como aqui: nas cidades também acontece o mesmo quando as ruas estão dormidas. É uma pulsão latente a alertar que, debaixo do asfalto e do concreto, sob os estacionamentos, parques e praças, no subterrâneo dos edifícios e nas entrelinhas das histórias contadas detrás de cada porta, permanece a essência viva dos quatro elementos, que clamam por atenção e carinho, mesmo que ninguém os ouça. De resto, ninguém mais ouve ninguém mesmo. Quem ouviria a natureza?

 

Cassiano morreu e eu não pude fazer nada por ele, exceto enterrá-lo no caminho que leva ao bosque. Voltei a ficar só, como estava antes de sua chegada. Queria muito escrever sobre ele, mas sei que não terei tempo. Também queria escrever sobre Alarico, mas sei que não terei coragem.

 

Em outra época fui escritor, e por isso conto histórias e me conto, embora não encontre ninguém que me leia. Já não escrevo uma linha sequer. Isso agora não importa. Minha vida não deve durar muito mais, mas eu seria capaz de dar o tempo que me resta para saborear um último prato de sopa quente de ervilha, feita por mãos carinhosas, antes que minha morte termine de se cumprir. Antes que, definitivamente, caia o pano. 

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Aleijões

 

Hoje, que sou um pouco mais velho, consigo pensar e ver melhor as coisas, apesar de tudo. Consigo compreender o que o universo e o destino fazem com a vida das pessoas, a despeito de tudo de bom que se espera deles — do universo e do destino.

 

Quando criança, via a barba no rosto de minha mãe e as duas grandes tetas saindo do tórax do meu pai. A mulher barbada e o homem tetudo. Naquela época eu ficava aflito vendo meus pais tão diferentes dos outros pais e não raro me confundia: chamava meu pai de mãe e vice-versa. Ou, para facilitar, chamava meu pai de “Abigail” e minha mãe de “Rodolfo”. Fora do circo, eles também evitavam me chamar de menino-elefante. Para eles, eu era só um menino. Tito é o meu nome.

 

No picadeiro expúnhamos em conjunto nossas deformidades e arrancávamos, todas as noites, gritos de admiração da plateia, que urrava diante da família medonha. Havia gente que cobria o rosto com as mãos mal saíamos debaixo do pano preto que nos cobria no início da apresentação. Mostrávamos a cara e ganhávamos os gritos de horror do público. Poucos aguentavam ver nossos aleijões tão de perto. A maioria tapava o rosto com as mãos para não ver. Não viam, mas estavam ali justamente para nos ver. Pagavam para estar ali e nos ver. Aleijões fascinam plateias desde sempre. Elas querem ver e se horrorizar com aberrações.

 

Dávamos, os três, um passeio pela borda do picadeiro, bem perto das primeiras filas, ao som tonitruante de Assim falou Zaratustra. Em algumas noites o sonoplasta trocava a trilha sonora pela Quinta de Beethoven. A música potencializava o horror que provocávamos. Depois vinha a apresentação individual. 

 

Meu pai ia até o centro da arena com as mãos na cintura, os seios descomunais empinados e o olhar desafiador. Girava, girava. Alisava o peito e ameaçava desabotoar a camisa para expor as tetas nuas. Não chegava a fazê-lo, mas a plateia delirava mesmo assim. Vez ou outra alguém do fundo gritava Mostra! Mostra!

 

Minha mãe se apresentava com um espelho oval numa mão e um pente na outra. Girava no centro do picadeiro penteando delicadamente os pelos pretos do rosto, que iam até quase a metade do peito. Ganhava aplausos e gritos de Linda! Linda!

 

Quando chegava a minha vez o público fazia silêncio. Eu começava a cantar uma canção infantil, mas o som que saía de minha boca deformada e cheia de dentes tortos era débil, esganiçada. Meu nariz, embora proeminente, não era capaz de captar ar suficiente para os pulmões e assim emitir notas poderosas. O que saía de minha garganta era pouco mais do que miados. A plateia gargalhava, batia os pés no chão e gritava Dança, monstrinho, dança! Eu executava uma valsa em volta de mim mesmo, mas o que eu queria era sair correndo dali e me esconder.

 

No final do número, nós três voltávamos para debaixo do pano preto e deixávamos o picadeiro sob uma mistura de aplausos, apupos e vaias da audiência. O dono do circo vinha nos cumprimentar pelo sucesso e pagar por nosso trabalho. Era assim que ganhávamos a vida.

 

Abigail e Rodolfo estão hoje enterrados em cidades diferentes, porque circo não tem parada fixa nem endereço certo. Minha deformidade e eu ficamos sozinhos no mundo. O tempo e sua ferrugem corromperam meus ossos, minha alma e meu humor. Virei bicho. Furioso e perigoso bicho, por determinação do destino e do universo. Tiveram que me enjaular para conter minha fúria. Em compensação, meus pulmões aprenderam a armazenar bastante ar e agora consigo soltar gritos potentes e assustadores. Muitas pessoas vêm me assistir. Ainda se horrorizam comigo e com o meu aleijão, mas pagam — caro — para me ver.

 

 

Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog www.homemdepalavra.com.br, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: “A (extra)ordinária vida real” (2016), “A mãe e o filho da mãe e outros contos” (2017) e “Espantos para uso diário” (2019). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura&Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Crônicas Cariocas, Escrita Droide e Subversa. Participou da “Antologia Ruínas”, da Editora Patuá, e da coletânea de poemas “Fragua de Preces”, editada em espanhol. Em 2020 publicará seu 4º livro de contos (“Verás que tudo é mentira”).

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