Ciência

As lições da Drª Nise | Nelson Nisenbaum

O patético depoimento da Dra. Nise Yamaguchi na CPI da COVID-19 ocorrido no senado é uma síntese de rara riqueza sobre o período que vivemos. Muito mais que um retrato do movimento dos discursos disruptivos dos quais o atual governo é useiro e vezeiro, consolida-se mesmo como o discurso intempestivo de uma época onde o ego exercia influência desproporcional no progresso de carreira de um profissional da medicina. Explico. Venho de uma formação que marcou um final de era na medicina, era na qual as condutas médicas que levavam alguém à fama, não obstante a diversidade de talentos que a profissão exige e que passam longe do puro conhecimento científico, era a famosa “experiência pessoal” ou “opinião” sobre o assunto. Advogando em defesa da hoje tão temida “opinião”, assevero que opinião é uma categoria intelectual que faz uma escolha dentro de um campo de validade construída por diversos níveis de conhecimento sobre um assunto, e não aquele juízo que para sua admissibilidade exige o solapamento de todo o edifício conceitual e experimental prévio, que é o que aqui chamamos de discurso disruptivo.

 

Confesso que durante o curso médico cheguei a bater continência ao modelo egóico de conhecimento e prática médica, mas ao mesmo tempo, acuso o aparelho formador (que ultrapassa as fronteiras das escolas médicas) de não me prover o ferramental necessário para que o personalismo pudesse ser identificado e removido dos radares do conhecimento. Posteriormente, na pós-graduação que fiz na área de Histologia na USP pude me alimentar dos alicerces filosóficos e metodológicos da produção científica, e ainda mais posteriormente, já no início do meu amadurecimento como médico aos tardios 16 anos de formado, comecei a estudar e aprender sobre a medicina baseada em evidências, à qual dirigi muitas críticas ainda válidas (não à sua natureza, mas ao seu mau uso), mas que sem a menor sombra de dúvida é o norte de qualquer profissional de saúde que assim queira ser chamado.

 

De fato, a capacidade da medicina baseada em evidências de prover respostas precisas e definitivas é pequena como uma formiga e lenta como um mastodonte. Mas uma vez que a pergunta correta e metodologicamente bem organizada obtém uma resposta, os céus fazem uma festa, da qual, ainda que na condição de míseros mortais, podemos participar e desfrutar.

 

Mas há lugar para festas também no inferno, quando determinadas criaturas em determinadas circunstâncias, como a da atual pandemia de COVID-19 e o atual pandemônio político resolvem dar lugar às forças atávicas das falsas e frágeis mitologias que na realidade são meras idolatrias, como bem lembra o Prof.Dr. Ricardo Timm de Souza em sua magistral obra “Crítica da razão idolátrica”, que recomendo a todos.

 

O momento atual foi propício para que túmulos de um passado de pedestais que muitas vezes serviram mais como cadafalsos aos seus imponentes e eretos próceres se revirassem e fizessem assim ressurgir sob as vestes da farsa esses verdadeiros zumbis que hoje protagonizam o discurso disruptivo que parece exercer mesmo um efeito hipnótico e bestificante sobre seus portadores. Sim, por que duvido que cada um de nós tenha uma boa teoria sobre o que faz pessoas como a Dra. Nise Yamaguchi, que carrega o peso de tradições de sua própria cultura familiar e étnica, da Universidade de São Paulo, do Hospital Albert Einstein e talvez de outras que eu aqui desconheça mas não menos respeitáveis, derrapem na curva da estrada da vida nas proximidades de seu ápice e exponha ao mundo a ridícula cena de rolar montanha abaixo, colidindo com todo o tipo de obstáculo no caminho, deixando um rastro de pedaços e partes tão miseravelmente reduzidos que talvez ao mais experimentado perito não permita identificar o que ali aconteceu.

 

A questão fundamental a ser aprendida no momento, é que pessoas com esta incrível capacidade propriamente pornográfica de expor suas entranhas mentais existem, e ocupam espaços que não conseguiram se proteger de um “vírus” ardiloso e oncogênico (homenageando aqui a especialidade da nossa “homenageada”) transportado nos seus cérebros. O cenário de barbárie atual, bem análogo ao quanto produzido na década de 1930 na Alemanha, jamais seria possível sem esse “vírus” dormente em segmentos da sociedade, que de tempos em tempos e em lugares diferentes do planeta desperta do seu túmulo como o mito do vampiro e põe em ação o arquétipo do sedutor sugador de sangue humano.

 

A Dra. Nise nos alerta para o fato de que a ciência e as instituições não bastaram, nas últimas 4 décadas pelo menos, que comigo foram compartilhadas em termos de tempo e lugar na profissão médica, para vacinar a sociedade contra tipos egóicos que na hora certa e lugar certo irão se agarrar a algo que nossa consciência moral mediana nos mantém bem distante para alcançar a fama e o poder. E a falta dessa “vacina”, por sua vez, é certamente por ação deliberada de um grande movimento negacionista anterior cujas sementes agora frutificam. Mas são frutos de árvore podre.

 

Nelson Nisenbaum, 60 anos, médico, escritor e ativista, especialista em Clínica Médica e Psiquiatria Clínica, trabalhou 25 anos no SUS em medicina de urgência e emergência, foi delegado do CRM em São Bernardo do Campo e Diadema, foi membro do Conselho Municipal de Saúde de SBC. Atualmente atende em Consultório particular nas especialidades de Clínica Médica e Psiquiatria clínica.

 

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