Cultura

As duas mortes de Alexandre Magno | José Arrabal

Alexandre Magno foi o meu melhor amigo em nosso curso médico, durante os anos de 1990, na Universidade de São Paulo. Estávamos sempre juntos nas horas de estudo, nos plantões do Pronto Socorro, em festas e na piscina da atlética.

 

Colega inteligente, estudante imaginoso, excelente aluno em todas as especialidades não temia ir além da alopatia, interessado pelas mais diversas culturas clínicas de outros povos.     

 

O que poucos de nós sabíamos é que ele fora criança de orfanato adotada por casal sem filhos. Xandi jamais soube quem eram os seus pais biológicos. Talvez por isso agisse entre nós de modo discreto, mas sempre atencioso e sorridente…

 

…quem sabe um tanto dissimulado?

 

Quando cursávamos Medicina, ele namorava apaixonado uma estudante de Enfermagem, também da Usp, com quem pretendia casar, isto até a ocasião em que, no ano de nossa formatura, desconfiado, flagrou essa namorada nos braços e beijos calorosos do enfermeiro-chefe de um ambulatório onde a moça estagiava.

 

Traído e irado, atracou-se ao vilão sedutor, deu nele alguns socos, quebrou os óculos e dois dentes do rival que deixou sem sentidos caído no chão da enfermaria. 

 

Daí, vingado, porém bastante amargurado, cuspiu na traiçoeira amada. Deu nela uns tapas e retornou ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas onde cumpria seu plantão acadêmico.

 

Processado por agressão em inquérito administrativo na faculdade e na justiça comum, viu-se absolvido por alegação de legítima defesa da honra. Na época, testemunhei a seu favor.

 

Formado médico naquele ano, bastante distante de sua alegria anterior, Xandi não participou das festas de formatura nem ingressou em residência hospitalar. 

 

Com o diploma, apenas despediu de mim e de algum outro colega. Transferiu-se para o Rio de Janeiro onde, no início, trabalhou em mil e um hospitais, entregue a um esforço clínico quase sobre-humano, longe de quaisquer diversões de juventude ou ligação afetiva com quem fosse, nem mesmo com seus pais adotivos. 

 

Dias antes de viajar para o Rio, num encontro rápido que tivemos, confessou-me que na vida pretendia apenas ficar rico:   

 

– Apenas rico… muito rico… é só o que me interessa… o mundo que se dane! Agora comigo será assim. Na hora certa nos veremos de novo. Aguarde e guarde minha estima por você que bem merece – falou sem mais dizer.

 

Calados, nos despedimos. Ambos, tristes.

 

No que me dissera, vi desgosto. Típico procedimento amargo, carreirista, próprio do tempo monetizado predominante, espécie de suicídio, morte anunciada de qualquer valia mais essencial e melhor para a vida. 

 

A principio pouco soube dele e do que fazia no Rio, sempre através de notícias trazidas por colegas da faculdade. 

 

Anos mais tarde me confirmaram que deveras Alexandre Magno estava rico, riquíssimo. Que passo a passo criara uma série de consultórios nas praças dos subúrbios cariocas, pequenas salas de pronto atendimento dia e noite a preços populares com os serviços de médicos recém formados, jovens residentes contratados por ele. 

 

Além dessa rendosa atividade, entregara-se a jogatinas e especulações compulsivas na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, obtendo espertas vantagens na compra e venda rápida de ações em momentos propícios a ganhos. 

 

Durante alguns anos associou esses seus lucros na bolsa a novos investimentos bem sucedidos. Nem mesmo a crise financeira de 2008 o alcançou com prejuízos. Consta que atento previu o desastre e antes da desdita vendeu todas as suas ações pelos melhores preços, num lance de privilegiada intuição. 

 

Senhor de perspicaz faro para negócios, aproveitou a quebradeira de uns e outros. Investiu esses ganhos em segmentos lucrativos, com o que enriqueceu ainda mais.

 

Duas semanas antes do Natal de 2014, Xandi me surpreendeu ao telefonar e solicitar um encontro nosso na mesma tarde em São Paulo.

 

Cancelei todos os compromissos para recebê-lo em meu consultório no bairro das Perdizes.

 

Elegante, bonito e bem vestido, ele parecia feliz.

 

Nessa oportunidade conversamos bastante, mais a respeito de passagens do nosso passado comum, evidentemente sem tocarmos no caso da tal namorada de juventude. 

 

Pouco falamos de sua vida no Rio. 

 

Lembramos de nossas aulas, dos velhos professores e de alguns colegas do curso médico, de farras e demais momentos alegres da vida.

 

Foi uma conversa divertida, distante de maiores comprometimentos. Conversa encaminhada a seu gosto, conduzida por ele de modo habilidoso.

 

Contou, omitindo detalhes, que prosseguia solteiro.

 

Quando sugeri que fosse comigo a minha casa, conhecer minha esposa e filhos, jantar conosco, desculpou-se alegando que retornaria ao Rio naquele mesmo dia, já com passagem comprada para a ponte aérea noturna.

 

Viera a São Paulo movido pelo intuito de me rever, reencontrar seus pais adotivos que jamais vira desde que se mudara da cidade e também para acertar alguns assuntos cartoriais, sem mais esclarecer.

 

Presenteou-me com caríssimo conjunto importado de caneta tinteiro e lapiseira, onde fizera gravar meu nome e o dele, mais a expressão “Por uma amizade feliz”. Presente especial que muito me contentou. 

 

Sem ter em mãos algo novo para lhe retribuir, dei a Xandi uma placa de prata exposta em luxuosa caixinha de madeira marchetada, objeto antes em destaque sobre minha mesa de trabalho, significativa lembrança da festiva comemoração do décimo aniversário de nossa formatura, quando, mesmo convidado, ele não comparecera.

 

Fiz questão de frisar:

 

– É sua! Uma homenagem a este seu retorno até nós! 

 

Agradeceu o presente que por algum tempo observou calado. Leu os dizeres da placa de prata sem tecer maior comentário além de um suave sorriso aparentemente emocionado. 

 

Nos despedimos com forte abraço e satisfação sincera.

 

Nessa hora, acentuei:

 

– Trate de não sumir de novo, Xandi! Apareça mais vezes, pois é muito bem-vindo! Grato por sua visita!

 

Atencioso, correspondeu:

 

– Está em meus planos! Logo retorno a São Paulo! Aguarde tranqüilo!   

 

Dois dias após a passagem do Natal, soube por um outro colega da faculdade que Alexandre Magno havia se matado em seu rico apartamento no Rio de Janeiro, justamente na madrugada natalina, notícia repentina que muito me abalou.

 

Contou o colega que momentos antes do suicídio, Xandi anunciara por email sua fatal decisão a um contador carioca de confiança, profissional amigo, contabilista de seus negócios. 

 

Na mesma mensagem, com minuciosa orientação, determinara ao destinatário do email que cuidasse do enterro. 

 

Adiantou-me ainda, esse colega, que o corpo do suicida estava em velório no Crematório paulista de Vila Alpina para onde fui às pressas. 

 

No percurso levava comigo estranha desconfiança de que aquele fora o segundo suicídio de Alexandre Magno.

 

Não me surpreendi ao ver seu corpo deitado num luxuoso caixão de madeira dourada que semanas antes em São Paulo ele comprara para ser usado na cerimônia fúnebre, tudo devidamente determinado na mensagem eletrônica encaminhada a seu contador.

 

Durante o velório soube que ele não deixara qualquer carta de despedida a quem fosse. Legara um testamento detalhado, endereçando a maior parte de sua fortuna ao orfanato onde quando bebê fora recolhido e criado até sair de lá levado por seus pais adotivos.

 

No testamento também destinou considerável quantia em dinheiro, mais dois bons imóveis, ao casal que concedera a ele criação e formação quando criança e na juventude. 

 

Separou com justeza o restante da herança para pagamentos de dívidas e impostos necessários à partilha de seu legado, gastos com as despesas na transferência de seu corpo até São Paulo, mais a cremação. 

 

Foi o que fez.  

 

Juntos a seus pais de adoção, alguns de nós de nossa turma de formandos médicos tratamos de espargir suas cinzas no campus da faculdade. 

 

Foi o que fizemos…

 

…contidos em nossas recordações de Xandi.

 

SP/BR

 

José Arrabal é professor universitário, jornalista, escritor, autor de contos, novelas e romances. Entre suas 50 obras publicadas sobressaem “O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira: Teatro” (Editora Brasiliense), “O Livro das Origens”, “Lendas Brasileiras, Vol 1/Vol. 2”, “As Aventuras de El Cid Campeador”, “Romeu e Julieta”. “Da Vinci das Crianças”, “Lazarilho das Crianças”, “O Terrível Gosmakente” “A Chave e Além da Chave” (Editora Paulinas), “A Ira do Curupira” (Editora Mercuryo Jovem), “O Noviço” (Editora FTD), “Stalin – Biografia” (Editora Moderna) “Histórias do Japão”, “O Lobisomem da Paulista” (Editora Peirópolis), “Contos Brasileiros (Editora Expressão Popular) e “Anos 70 – Ainda Sob a Tempestade” (Aeroplano Editora). “NOUVELLES BRÉSIL” (Antologia de contos/com outros autores) – Collection Archipel – Éditions Reflets d’ailleurs–França – Blog  [ http://josearrabal.blogspot.com.br/ ]

 

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