Cultura

Antes do céu | Leonardo Bachiega

 

1.

 

queria ser o texto

que se apaga

ninguém poderia traduzir-me

seria a moça

a dobar pássaros

 

2.

 

a moça

queria acompanhar-me

por onde fosse

como um rouxinol no coração do ar

como se enxugar o tempo

fosse adivinhar a saudade

 

3.

 

estamos eu e ela

resolvendo a paisagem

até libertarmos os olhos da solidão

e ao desenhar solidão líquida no espelho

esperar o breu

 

4.

 

o sentido da palavra amor

eu sorver-te a lágrima enquanto choras 

perco-te quando está triste

se anda com dificuldade

até onde descem os ossos

eu demoraria o seu peso

 

5.

 

a moça envolta a entulhos

vedou os olhos com estuque para escapar do mundo

eu inteiro num molde disse

quando o teu anjo chegar… eu estarei bem

com a boca cheia de campainhas

procurando por todo o lugar uma alma

se eu disser fico…

o frio será o meu mate

 

6.

 

eu não consegui parar a árvore

e ela seguiu andando para o meio do mato

descobri depois 

tatear teu rosto

é como uma árvore centenária

na mata

 

7.

 

eu replico ilhas inalcançáveis

procuro o segredo do amor

e da verdadeira vida

a moça com um fino tear

tece fios de aves na palavra 

homem

 

8.

 

eu não habito a terra

habito uma janela demorada

 

ela estava na janela 

ouvindo pensamentos

 

9.

 

você com as tuas raízes limpa o mar

você com a tua dentição de lua

soletra o céu

como eu poderia respirar amor contido

debaixo de um mármore

 

a moça guardando uma fiada de afogados

fez-me a chuva esquecer a remota morte

 

10.

 

a moça ainda separando um amor do outro

disse

o coração rosna a mais pequena ameaça

o que não fica pede-se 

beber ao poço um sentimento alheio

a costurar cinzas e sombra

 

11.

 

eu ao colocar a mão sobre a dela

cuidadosamente como se em carne viva

olhei para a página

para que o poema não a perseguisse

ela simples como faz

desapareceu para sempre

eu… cumpri parado o olhar

como um lagarto que adorna o sol

esperando um sopro de luz me fechar

 

 

Leonardo Bachiega, é arquiteto, urbanista e escritor, nascido em São Paulo, hoje reside na cidade de Carapicuíba. É autor de alguns livros de poesia e um de dramaturgia e no momento se dedica a um livro de contos e mais uma peça. Possui poemas publicados em diversas revistas literárias do Brasil e Portugal, e também possui poemas em diversas antologias, entre elas a antologia da off flip. É criador do podcast “Proximidades do Acaso”, onde recita seus poemas e de poetas que o influenciam. Fernando Pessoa é seu poeta da vida.

 

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