Cultura

A fonte dos suspiros: uma leitura do romance Suspiro seco, de Edgard Pereira | Caio Junqueira Maciel

 

Divulgado inicialmente em edição eletrônica pela Amazon, o romance Suspiro seco, do ensaísta e ficcionista mineiro Edgard Pereira, chega agora em seu formato físico, publicado pela Caravana Editorial. Romance de caráter intimista, social, polifônico e que pode alojar-se numa estante na boa companhia de Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Elias José, Luís Vilela, Autran Dourado e Silviano Santiago para lembrar de grandes autores mineiros, pois Edgard é dessa estirpe, por nascimento e vocação literária.

 

Na edição eletrônica, há esta síntese: “No limiar da maturidade, um professor solicita a um amigo escritor que registre em palavras os principais fatos de sua vida. Os lances essenciais envolvem a formação, as relações amorosas, (incluindo uma homoerótica), uma cirurgia cardíaca, perdas afetivas, casamento e algumas efemérides familiares.”

 

No começo da narrativa, o leitor tem a impressão de que vai ler um romance rural ambientado nas montanhas do Sul de Minas, numa época bem recuada no tempo. Um espaço assim caracterizado: “[…] carroças que estacionavam cheirando a capim e bosta ardida de cavalo. Outros comerciavam raízes do mato, pinga artesanal – mandioca, batata doce, amendoim, – exalavam cheiro adocicado e nauseante, montando cavalos novos que ofegavam, balançando o pescoço arisco. “ Mas tal impressão se dissipa, pois já estamos na capital mineira, onde ocorre a ação nuclear do romance, num espaço tipicamente urbano: “A praça, a revelação de sua face de escoadouro de olhares, flertes, grupos de pessoas que se comprimem e cruzam, no incessante burburinho do dia a dia.”

 

O protagonista é, até certo ponto alter ego do próprio autor (quem conhece os livros anteriores, o romance Outono atordoado, os contos de Lobo do serrado, o diário de Dios portugueses e outros) há de identificar aspectos biográficos recorrentes, disfarçados ou não na ficção. O nome do personagem principal é Diogo Calib Luz. Nas primeiras páginas da narrativa há referência de que o nome de Diogo contém 13 letras, mas só mais perto do final é que temos esse nome todo por extenso, desculpem o spoiler. Pode-se associar o primeiro nome ao significado etimológico de didático, conselheiro, o que ensina, complementado pelo último sobrenome, obviamente ligado ao ensino. Porém, o nome do meio, que é fruto de um erro cartorial, e que foi sugerido por uma libanesa, é o avesso do sobrenome do poeta parnasiano Olavo Bilac, que é citado no romance: “Talvez deva lhe adiantar minha admiração por Olavo Bilac, de quem sei de cor alguns poemas.”

 

Essa passagem, da segunda parte do livro, está sob a perspectiva do narrador Diogo, dono de um discurso rico em efeitos poéticos. Citarei só este exemplo, marcado por aliterações e assonâncias em /i/, com expressivo conteúdo elegíaco: “”Meu coração combalido, num sufoco de ânsias, ardia. A alma esfolada, mais parecia um gafanhoto repulsivo e hirto.”  Diga-se também que o narrador da primeira parte, o amigo de Diogo e também professor Osório Lemos (nome relacionado a montanhês e sobrenome ligado a leme, no caso, condutor do relato), possui linguagem de alta voltagem poética: seu relato abriga versos de Augusto dos Anjos (do belíssimo soneto “O vencedor”, em que se fala que ninguém doma a alma de um poeta), além de referências a poetas portugueses clássicos e modernos, tais como Camões, Eugênio Andrade e Vitorino Nemésio.

 

O que se pode questionar, na primeira parte da narrativa, é o fato de que os recursos estilísticos de Osório pouco diferem da linguagem de Diogo, na segunda parte. E o que se percebe, claramente, é que Edgard nos propõe, para adotar uma metáfora de Roland Barthes, um jogo de máscaras. Transcrevo algumas considerações do crítico francês: “A função da escritura romanesca é colocar a máscara e, ao mesmo tempo, apontá-la.[…] Toda a Literatura pode dizer: ‘Larvatus prodeo”, avanço apontando minha máscara com o dedo. Quer se trate da experiência inumana do poeta, assumindo a mais grave das rupturas, a da linguagem social; quer da mentira credível do romancista – a sinceridade precisa aqui de signos falsos, e evidentemente falsos, para durar e ser consumida. O produto e, finalmente, a fonte de tal ambiguidade, é a escritura.” (Roland Barthes; O grau zero da escritura. Tradução de Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1971, p.52)

Edgard Pereira duplamente se mascara, no narrador Osório Lemos e no protagonista Diogo, que também assume o leme do relato. Ao longo do romance, há outras superposições de máscaras, como o nome da cidade natal do autor, Jesuânia, que se mascara em Selado, como a cidade vizinha de Lambari, que se mascara em Correntes; e há máscaras até risíveis de tão pouco que ocultam, vejam neste excerto: “A grita na imprensa cultural do Rio de Janeiro foi veemente, a romancista Nelita Piñera liderou um movimento de desagravo, com a assinatura de expressivos intelectuais do país”. Mal disfarçado o nome da escritora Nélida Piñon…Ou esta outra passagem: “A história do Suplemento literário das Vertentes, apesar de sobejamente conhecida nos redutos culturais, em suas vigas mestras, não custa ser lembrada. Fora fundado pelo escritor Múcio Julião,”  Somente um leitor muito ingênuo não iria aí reconhecer Murilo Rubião e o Suplemento Literário do Minas Gerais. E há referências mascaradas de autores que ali escreviam. Alguns, identifiquei, outros não. Dos identificados, eis aí o poeta de Oliveira Márcio Almeira, amigo de Edgard, que é assim apresentado: Dentre os colaboradores do interior, quem mais dele se aproximava era um jovem poeta de Oliveira, cidade do centro oeste, ganhador de vários concursos literários, nome Matos Alvarado. Escrevia uma poesia de imagens exuberantes, paciente pesquisador da contribuição de Rimbaud, expressava de forma espontânea e refinada o alvoroçado roteiro dos sobressaltos urbanos.”

 

Entretanto, isso é aspecto secundário da obra. Como outros episódios laterais, envolvendo o congado na Igreja do Rosário de Selado; o crime sexual que ocorre nessa cidade pacata; as referências ao contexto político dos anos da ditadura militar; as referências históricas à descoberta da água mineral na região de Selado; a base rural da formação de Diogo; a vida do boiadeiro e açougueiro pai de Diogo; a morte da mãe desse personagem; as considerações sobre o ensino universitário na atualidade; as referências ao colégio Sion e ao seminário de Campanha – embora, esse último tenha mais importância em relação à estruturação psicológica do personagem (e do autor, penso eu. Toma-se, por exemplo, este trecho parentético: “(Abro um parêntese. A ordem expressa do biografado era que não desse demasiada ênfase ao período do seminário, no corpo da narrativa.)” Entretanto, o próprio protagonista, num determinado momento, vai preencher um pouco essa lacuna, surpreendendo o leitor, e não vou dar o spoiler

 

O que realmente importa, o que pega pesado e vai fundo nessa narrativa tão bem urdida, densa e poética, é sua dimensão erótica, intimista, profundamente humana. O livro fala de amor, por isso é universal: “Olho no olho, lábio no lábio, fazer amor parecia uma construção minuciosa de gestos e movimentos, um jogo de código secreto, cujos resultados sempre dependiam de paciente reinvenção.” O livro, em linguagem poeticamente trabalhada, fala de travessias: “[…] era preciso atravessar, sob o risco de vento inóspito, a espessa trilha de sonhos arruinados”; o romance, não por acaso, fala de uma personagem feminina chamada Acácia (tão distante de seu xará conselheiro), afrodescendente, amiga e quase namorada de Diogo, é a que tem “alma de aspirina” e é a respeito dela que o narrador Diogo capta o “suspiro seco, abafado”, perto do desenlace do relato. Diogo acaba por se casar de uma amiga de Acácia, Raquel, com quem tem dois filhos. Há um personagem, mero figurante, mas dele vem uma característica que vai se integrar à temática central do romance: “Urias Avelino, vaqueiro moço, sedutor. Seus olhos lançavam uma escura veemência ao se fixar no rosto das pessoas com quem tratava.”  Essa veemência que constará nos momentos de maior vibração erótica e tensão romanesco se passam é na relação entre Diogo e o ex-servente de pedreiro e mecânico Inácio, personagem calorosamente assim descrito: ”Rapaz novo e atirado, transbordava energia, assemelhava-se a carro turbinado, com o motor pronto para explodir em estradas claras, batidas de sol. Tinha alma de ave de arribação, avessa a práticas consistentes e duradouras, fascinado por novidades e espaço livre, incapaz de criar raízes.”

 

Em certo instante, Diogo é assim descrito pelo narrador: “Sentiu tontura, a boca amarga, uma ventoinha girando sem parar em algum lugar da cabeça”. Essa imagem da ventoinha  está diretamente ligada a Inácio (nem precisa lembrar a etimologia ígnea de seu nome, que dá combustível dramático à história): “No fim da tarde, enfarado de semiótica, deixou a Biblioteca, voltou à mecânica. O amigo trouxe o carro, metido em macacão com o logotipo da Pirelli e óleo Lubrax, um sorriso largo no rosto. Dava explicações. Naquela esfera do motor o induzido gira. O platinado falhou, avariado. A ventoinha derreteu com o calor exagerado. Queimou o capacitor. Esses comentários deixavam-no perplexo e frustrado. Admirava a descrição linguística, mas não entendia a questão mecânica, de forma concreta. Uma época pensou em ser mecânico, ajustar parafusos e pinos no lugar certo, montar uma geringonça de metal ou madeira. Fazê-la mover-se, funcionar! Invejava os técnicos que sabiam fazê-lo.”

 

A sexualidade em nenhum momento tange a vulgaridade. A abordagem da questão homoerótica vai aparecendo aos poucos, como numa subida de alguma montanha de Minas. De início, comentários velados ou boataria, insinuações maliciosas, mas, aos poucos, o homoerotismo aflora, em metáforas lancinantes, como neste trecho: “[…] brotava um impetuoso e eriçado arco-íris, nos músculos aceso.” Ou ainda: “A sexualidade, até então domada, tendia a impor-se rebelde, enviesada, sem temor de arrostar as arestas.”  E o protagonista vive naquela tensão entre a moral burguesa e a transgressão.

 

Frisa-se que, ainda que tal temática seja oportuna nas discussões de opções sexuais na contemporaneidade, o que rege tudo é o poder da linguagem. Não é gratuito o fato de o amante do protagonista, tão diferente dele em termos sociais, econômicos e culturais, seja um ex-pedreiro e mecânico. A imagem do pedreiro está associada à construção da linguagem, aquele “tijolo com tijolo num desenho lógico”, na construção de Chico Buarque, aqui retomada com mais discursividade: “Além do esforço físico, juntar palavras e agrupá-las na ilusão de construir um sentido, uma sequência de frases consistentes – tal como o pedreiro faz com os tijolos para elevar um prédio – existe o aspecto subterrâneo da operação, a necessidade de fundar sólidos alicerces, escolher pedras brutas. Encontrado o estilo, urge elaborar conceitos, conviver pacientemente com as palavras, apesar de sua consistência pálida e às vezes lúgubre. O que não impede se mostrem por vezes coloridas, sonoras, vibrantes.”

 

Por fim, há mais coisas que me despertam atenção nesse surpreendente romance de Edgard Pereira, como o impacto de certas imagens como esta, associada a um engate intertextual: “O amigo abriu a porta. Jogou-se nos seus braços, uma bola de basquete lançada contra as grades do campo. Um fragmento de Silviano Santiago trouxe alguma luz ao relacionamento insólito: ‘Falta-lhe a elegância das pessoas magras e a sofisticação das grandes cidades. É pesado e grosseiro’” Há, ainda, nas frestas do enredo, inserções de lições do bom escrever: “Repetiu duas vezes: “As palavras são enganosas, conseguem nos enredar: carece domá-las. Exercite na escrita três lances: a economia, o rigor, o ritmo”. Destaco ainda a oposição entre seco x úmido. O protagonista, tal como o autor, é de procedência de lugar temporariamente úmido: “As montanhas eram úmidas de outubro a março, época de chuvas, frias entre abril a agosto, no inverno, as silhuetas azuis fechando o horizonte. O coração fraquejava. A água é o sangue da terra, os córregos são as artérias do planeta.”  Contrastando com as montanhas, há o mar, no episódio em que Diogo conhece tanto Inácio quanto Acácia, enquanto uma dupla de gays cantam cançãoes da guerreira Clara Nunes: “[…] chegou a atribuir ao contato com o mar o prenúncio de novas experiências.” Em outro cenário, na casa do interior, há esse jogo entre o seco x úmido: “[…] a esteira deixava o ambiente permeável ao clima externo, com trocas abruptas de temperatura, do quente para o frio, do seco ao úmido.”

 

Em meio a isso, os muitos suspiros que fazem do texto um corpo vivo: “Amizades particulares eram mal vistas no internato. Era até provável jamais haver se declarado. O alvo dos suspiros não retribuía explicitamente aos olhares do límpido, harmonioso e retumbante soprano.” “[…] ela sentia as narinas dele quentes no pescoço, o ritmo da respiração embaralhava, tornava-se um longo suspiro, quando se deram conta já estavam dentro do apartamento.” ; ”[…] ao movimento sutil de uma folha, trêmula ao sopro do vento. Como a um suspiro, mesmo retido, sucede uma funda inspiração, recompôs-se, sorveu o ar com vigor, olhou intensamente o companheiro, envolvendo-o num caloroso afeto.”  E, ao comentar sobre o amor a que não se diz o nome, o amor entre sexos iguais,    esta passagem: “ ‘Você e eu, pode ser?’ Diogo provocou. Inspirou fundo, os suspiros inauguram uma gramática inesperada, ocorrem sem aviso prévio. Indiciam no geral uma suspensão do equilíbrio orgânico, análogo”.

 

E é a linguagem esplêndida, como disse Barthes, que eleva a escritura e descortina a verdadeira fonte dos suspiros.

 

Fotografia de Caio Junqueira Maciel

 

Caio Junqueira Maciel é escritor mineiro, romancista, poeta e ensaísta

 

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