Cultura

A escrita do traumático: o face a face com a morte

A escrita traz à tona o trauma.

 

Ouvir o murmúrio na roda do ruído.

 

O si se funda no instante do trauma.

 

A escrita deixa traços, rastros e expõe o indizível, o inaudito.

 

Põe nas páginas universos, une versos, poliversos, multiversos e cria o que o escritor não sabe.

 

Os traumas são esgarçamentos que não foram capturados e, muitas vezes, nunca o serão. O traumático explode nossas mãos, juntamente com o nosso corpo sensível e psíquico. Pelas mãos escorrem nossas intensidades. No traumático perdemos substâncias. Nas pandemias, nas guerras, nos conflitos urbanos se perdem vidas. 

 

Também são perdidas constâncias, hábitos, corpos, amigos, livros e a liberdade de voar neste face a face com a morte.

 

A escrita traz à tona o trauma

 

Na escrita ouvimos o murmúrio na roda do ruído.

 

Quando falamos em morte logo surge em nós a palavra decomposição.

 

Decomposição dos corpos, decomposição das narrativas, decomposição do que somos e do que nos rodeia.

 

A sensação de si em si movimenta a chave na fechadura.

 

Na vida pulsa a composição; a composição da escritura, a musicalidade da escritura e o seu ritmo.

 

A vida é o campo das composições/decomposições. O traumático pode ser composto através da escrita.

 

Compor o traumático através da escrita é exprimir acontecimentos explosivos e avassaladores. É exprimir o impossível através da magia poética que é um voo sobre o precipício. A escrita pressupõe um distanciamento do traumático em si. Porém, aqui temos um paradoxo, pois, só podemos escrever sobre a morte se estivermos imersos nela.

 

Ouvir o murmúrio da morte no 

Instante infinito em que movimenta a vida.

 

Nesse paradoxo, a escrita traz à tona o trauma. Neste instante infinito em que estamos frente a frente com a decomposição/composição, acontece a vida. Esta é a tecelagem da escrita, momento sombrio, triste, luminoso e alegre.

 

O escritor tecelão começa a tecer vivacidades que trarão para o seu tecido um clarão próprio, no qual enxergamos tramas e estampas, traumas e turbulências.

 

Composição e decomposição. Eis o movimento ético e estético da vida e da morte.

 

Ouço murmúrios nas rodas dos ruídos.

 

Os ruídos do traumático vão-se tornando ensurdecedores e escutá-los nos assusta e nos aterroriza. A escrita do traumático acontece quando estamos em contato com a decomposição em seus paroxismos.

 

A arte nesse instante nos salva. A pintura, através de suas pinceladas, compõe e decompõe constantemente. Com um pincel na mão o pintor compõe e concomitantemente decompõe o fundo ainda não preenchido da tela. Leonardo da Vinci tinha dificuldade em terminar seus quadros; queria perpetuar o movimento de criação. O branco da tela nunca existiu, assim como a folha em branco do escritor; eles estão embebidos das superfícies e das profundezas do artista num movimento de dobras e desdobras que compõem o devir.

 

Na escrita propriamente dita ocorre que riscamos, rasuramos, sublinhamos, pontuamos e apagamos. Todas essas intensidades pulsantes ganham textura e texto se estivermos encharcados dos estrondos que nos habitam nos meandros de nosso devir.

 

Nesse mergulho, a caneta passa a refratar nossa alma no papel.

 

A escrita traz à tona traumas.

 

Somos vida e morte em concomitância.

 

Em concomitância somos composições e decomposições.

 

Podemos escrever sobre o traumático porque este tem face, tem rosto, sempre mutável diante de nós. Sempre mutável, sempre diante de nós, face a face em interação e alteridade.

 

A escrita traz à tona traumas.

 

Este face a face com a morte existe e insiste, pois sua presença se exprime, comprime, expande, grita e silencia.

 

Nos tornamos outro através da escrita. Nos decompomos e nos compomos em diversos compassos, num remoinho que forma para se decompor sempre.

 

Nesse instante sem tempo cronológico, uma marca se impõe flui e frui. A magia da escrita do traumático habita esse não tempo e não lugar. Mítico, portanto.

 

Esse tempo mítico dos extremos da decomposição de si e do texto é uma potência compositiva que atravessa as mãos do escritor, produz o texto que surge como uma miríade e ganha horizontes, pontes, planícies e planaltos; ganha dimensões entre o ruído e o murmúrio.

 

Entre o murmúrio e o grito, um compasso de cores e de letras pulsam coreografias. Esse ritmo sonoro de múltiplos matizes tonalizantes coreografam uma dança de palavras, parágrafos e páginas provenientes do face a face com a morte.

 

Pontuações pulsam.

 

A escrita traz à tona traumas.

 

Alcimar Alves de Souza Lima

                                                        15/07/2021

 

Alcimar Alves de Souza Lima. Médico psiquiatra e psicanalista, pintor de aquarelas, poeta e ensaísta. Vive em São Paulo e tem vários livros e artigos publicados.

 

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