Cultura

A enforcada

 

Luzes azuis do carro da polícia

piscando ansiosas, puxam os 

meus olhos para o lado esquerdo da 

janela. À direita, reunindo-se

aqui e ali, pessoas formam blocos

à entrada do prédio branco do 

outro lado da rua onde moro. 

Já deve ter passado das dez horas 

da noite. O infernal calor do dia 

permanece embutido no frescor

sombrio da cidade: obsessivo, 

pesa, afunda os corpos em si mesmos,

suarentos, molengas, displicentes. 

O ar denso, oleoso, cheira a monóxido 

de carbono, a enxofre. Vozes mudas

buscam cumplicidades, mais do que

comunicação, assim como os olhos,

voltam-se para o chão, vagueiam, perdem-se.

De caderneta à mão, sai do circuito,

ao mirar para o alto, o encarregado

policial do caso; vê a minha 

imagem sem camisa na janela –

sem noção do ocorrido, intranquila,

intuindo alguma coisa grave 

no ambiente. Retoma os seus cuidados

o guarda. Eu me deito estirado 

para saborear na rede um leve

vento, recém-chegado, viajante,

do mar. Traz, mensageiro salso, notas 

longínquas de paragens encobertas…

Passam alguns segundos de prazer

e logo sou engolido por hipóteses:

o que leva a todos a agirem

sob o solene véu do abatimento,

sob a fina neblina do temor

e do respeito ao próximo, distante?

Penso em talvez descer, ver no que posso 

ajudar. Não, melhor não, pois pressinto 

que o irremediável já se fixa

na testa das pessoas, o luar

na rua. Identifico o vizinho

da casa em frente, em meio à gente, espectros,

se vistos da janela, e ele hierático 

andando de um lado para o outro.

Em seu quintal esplende uma mangueira

centenária, elegante e sóbria, que 

abriga insetos, micos, ninhos, pássaros

em trânsito, morcegos, pipas, tênis

pendurados, e gera, à mancheia,

mangas exuberantes, ouro em queda

pelo passeio público, dispostas

ao incauto, ao devoto do dulcíssimo

êxtase oferecido pela fruta. 

Sonada, à espera do desfecho 

da cena, só deseja a dispersão

daquelas sombras mornas, murmurantes,

medrosas, ao seu redor, para que enfim 

possa recuperar o sonho lúcido

que sonhava, suspenso pelos gritos

ásperos, intratáveis, guturais,

lançados por alguém que via o horror. 

Antes de dormir, viro-me e converso

comigo:  “Amanhã, quando o lixo

eu for jogar, pergunto, à senhora

da vendinha, o que se deu de fato.” 

– Uma tragédia, filho, a D se

enforcou. “Quem?”, indago. – A mulher

que lavava a calçada de noitinha… 

“Que triste! Sei quem era, nova, bela…

Sabe as razões?”, insisto. A vendedora, 

de máscara com símbolo de um time

de futebol, movendo a cabeça

em negação, retira o olhar

da mira dos meus olhos e o firma

no infinito. Agradeço a informação

dada e sigo em frente em direção 

à praia. Suicídio, meu deus, por

enforcamento! Horrível! Já não sinto

meus pés no chão, o peito sufocado,

tenso o pescoço queima, falta ar,

me apoio na amurada de uma igreja,

ao lado de um recanto onde os fiéis

acendem velas, oram, fazem suas

promessas, seus pedidos, seus ex-votos

pousados, dando graças, fé nos santos.

Aos poucos me refaço, cruzo a rua,

quase sou atropelado, a vista turva.

A imagem de D viva, short preto,

branca a camiseta amarrada,

a barriga de fora, a calçada 

cinza, a parede nívea enrugada

do prédio, na lavagem, só, descalça, 

um rabo de cavalo, os cabelos

castanhos, alva a pele, a cabeça 

abaixada, ao fim do dia, vem,

palpável, em cinema, à minha frente.

Tinha um filho, sim, creio que sim, tinha.

Vejo-o passeando, da mãe os traços, 

com um cãozinho feio, a pele malhada.

Levará o rapaz nas costa D

pelo resto da vida? Frágil Sísifo,

o que deu o primeiro grito, surdo

no esforço insano de, heroico,

tirá-la do cordame improvisado

para tentar içá-la ao alto do

monte da vida outra vez, passa 

tranquilidade, tímido que é.

O cachorro, agitado, quer brigar,

colérico, mordendo a coleira.

A partir de agora, não será

o mesmo passeio, as lembranças

da fratura faríngea, cervical,

traqueal, das lesões na via carótida,

cérebro anoréxico, esfíncteres

sem controle, urina, fezes, lívido

rosto, inchaço, pânico geral,

o atormentarão, voltando quando

só no quarto, na sala, em sonho, sem

paz no café, na praia, no teatro,

em cada pequenino ato, ao

por do sol, ao fazer amor, a lua

lânguida, borboleta branca, lembra,

o vento, peregrino sem morada,

lembra, o gosto ácido da torta,

o silêncio, o nada, a madrugada,

lembra, faz renascer, materializa.

Sigo em frente rodeado de fantasmas,

um sol de meio-dia de matar 

faz o suor correr por todo o corpo.

Quero água, cerveja, um refresco,

só não quero conversa com ninguém;

mas é exatamente o que ocorre

assim que ponho os pés no botequim.

– Olha quem está aqui! O professor

que preza a academia mas despreza

o saber de uma mosca de bar bêbada!

Não pude acreditar ao ver à minha

frente um cara culto, interessante

mas rancoroso, chato, violento,

que aluga o meu ouvido sem pedir

e de quem é difícil escapar.

– Boa tarde, amigo! Bom te ver! 

– respondo diplomático, pensando

já numa estratégia de saída

à francesa. De copo na mão, sem

preâmbulos, começa a discorrer

sobre o enforcamento e o trágico:

– Quando em sã consciência poderia

alguém prever que o trágico viria

estarrecer um bairro classe-média

da Zona Sul carioca, rodeado

de quartéis do Exército brazuca,

sem assalto, em autocídio,

sem culpar a pobreza, nem a raça,

nem a maldade inata de bandidos,

numa sociedade desigual

ainda escravagista, no Império

ainda vivo n’alma, nos costumes,

nos hábitos impostos pela elite

mais podre do planeta, que odeia

o povo que governa e saqueia!

Uma mulher de trinta deixa Thânatus

vencer Eros após expulsar o

filho de casa, entra em depressão

e comete a hýbris, desmedida,

desafiando os deuses, como Antígona

ou Medéia. Tivesse lido a carta

do Tarot do Enforcado, saberia

que duraria só um tempo o mal-

estar, dependurada pela perna,

esperando o mundo retomar

o seu eixo central, girando em torno

do sol do amor, da vida, do prazer.

Não é não, meu irmão? Nesse momento,

percebe que seu copo está vazio,

e sem querer ouvir o que respondo,

pede para que eu pague outra cerva

enquanto dá um pulo no banheiro.

Confirmo com a cabeça que farei

isso mas, no instante em que o vejo

entrar no toalete, saio a mil

do boteco, correndo pela rua

esbaforido, até chegar na esquina.

Daqui vejo o mar, o deus supremo,

o belo enlutado, azulvioláceo!

A praia se abre à minha frente e todos 

os sentimentos, medos, sensações,

pensamentos cruéis, mágicos, vagos

se esboroam nas ondas estourando 

na areia. Milenar me olha o Morro 

da Urca, despreza minha dor,

minha angústia pois viu muitos de nós

nascer, morrer um sem número de

vezes, frágeis, a seus pés de Titã.

Não sei por quantas horas permaneço

ali parado, em êxtase febril.

Uma menina suja, de nariz

escorrendo, me pega pela mão,

me puxa, me pergunta o que está

acontecendo. Só, abandonada,

quando me vê melhor, me pede grana.

Tiro do bolso tudo o que trazia

e dou a ela sem pestanejar.

A menina, feliz, parte gritando:

– O tio gente boa é uma mãe!

O tio gente boa é uma mãe!

Em eco, sua voz some distante

no momento em que a areia acaricia

meus pés, já sem sapatos, massageados

pelas águas dulcíssimas do mar.

Ah! Cósmico prazer… Gozo completo…

Do nada, me assustando, um objeto

plástico vem bater em minha perna:

um cão troncudo passa, me molhando

todo, numa carreira insana atrás

de uma garrafa pet mordiscada.

Longe um cara acena e se desculpa.

Morde o polietileno o pitbull,

me molha outra vez, volta ao dono,

implora, balançando o rabo, que

jogue de novo o totem na enseada.

O dono, conversando em alta voz, 

lança com displicência a garrafa,

não tão longe, bem perto na verdade.

O cão se joga alegre, vital, forte, 

latindo atrás do objeto do desejo.

No meio do caminho, no entanto, 

muda de rota e nada para o fundo.

O dono até repara mas não liga –

Eu ligo! Eu junto as partes! O cão espera 

alguma reprimenda, algum grito 

que não vem. Ondas quebram. O sujeito, 

numa conversa longa, não vê o seu 

animal se afastar cada vez mais.

Duas meninas param, tiram fotos, 

comentam encantadas: “Que fofura!” 

Depois seguem em frente, domingueiras.

Meus olhos são levados na leveza

de seus passos de pássaros ciscando.

Ao virar a cabeça, vejo agora

outro cidadão, não mais o antigo,

com novo cão brincando no local

em que o anterior se encontrava.

Um pouco amargurado, sem saber

o destino do dono e do pitbull,

retorno para casa, enquanto a noite

cai abraçando o Morro milenar.

Na mente, insistente, a imagem

da enforcada pousa, retirada

do balançar sinistro do cordame.

Um calafrio elétrico percorre

minha coluna, chega no cabelo,

na testa, no nariz, nos olhos, boca

quando, na portaria de meu prédio, 

vejo a moça lavando a calçada

com vigor e empenho, muito viva.

Na hora os joelhos amolecem

e só não caio como um corpo morto

cai porque discrimino, alva flor,

lavando a calçada, a vizinha

da enforcada. Não sei se tentando

apagar os vestígios da quermesse

fúnebre que se dera ontem à noite

ou se, em homenagem, repetindo

cotidiano gesto, no horário

habitual, local igual, as mesmas

roupas, layout idêntico, macabro

tributo, talvez só provocação.

Ela para, me olha, penetrante

bruxa, icamiaba, pitonisa,

sacerdotisa, esfinge, xamã, mater

dolorosa, Iansã, Yemanjá, Oxum,

todas num golpe único de vista.

Embriagado, extático, me deixo

levar. Assim, voamos pelos céus 

da cidade, embaixo o mar, os morros,

túneis, pontes, favelas, aeroportos,

em simultaneidade aparecem

cenas matriarcais, de infernais

maus-tratos, torturantes punições,

guerras intertribais, imolações,

prazeres incontidos, bacanais,

espocam ao redor de nosso laço

de olhos ímãs, átomos amantes,

milhares de universos conectados.

Um caminhão de lixo cruza a rua,

ela ajeita os cabelos, eu sorrio,

a lua cheia surge glamorosa,

abro a porta prata do meu prédio,

volto-me e aceno, ela também,

parada, a vassoura na mão, rindo,

exatamente como D sorria.

Subo a escada e em cada andar que passo

encontro a enforcada. Não há mais

nada a fazer, não posso fugir

nem fingir, só me resta conviver

com a mulher que veio habitar

os corredores, quartos, labirintos

do jardim que cultivo solitário,

tecelã da mudança inevitável,

mãe da metamorfose final…

 

André Gardel é brasileiro, nasceu em Canoas – RS, em 02/10/1962. Com dois anos de idade vai para o Rio de Janeiro, cidade onde mora até os dias de hoje. Além de escritor, é compositor de música popular e Professor Associado II do Curso de Letras e do PPGAC (Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas) da UNIRIO. Publicou 12 livros (de ensaios, dramaturgia, biografia, poesias, contos, didáticos), recebendo o Prêmio Carioca de Monografia de 1995 por O encontro entre Bandeira & Sinhô; e lançou os CDs Sons do Poema (1997), Voo da Cidade (2008), lua sobre o rio (2014) e Na palavra (2019). Irá publicar proximamente o romance A viagem de Ulisses pelo Rio Amazonas.

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