Cultura

A complexa tessitura da simplicidade de uma paranoia | Luiz Eduardo de Carvalho

Há, na deliberada mistura dos gêneros literários, um imenso campo de investigação do engenho de compor narrativas. Técnica ou arte, mal sei distinguir, que alguns autores contemporâneos temos perseguido, nem todos com a habilidade e brilho de Leonardo Almeida Filho.

 

 

Assim, encontramos livros de contos que parecem um romance disperso em fragmentos que aos poucos narram uma grande história. Há, também, romances, empenhados em apresentar um enredo encadeado, cujos autores o fazem com a maestria dos grandes contistas, em episódios aparentemente desconexos que ganham urdidura ao passo que avançam para culminarem, com disfarçada coesão, numa narrativa que jamais teria o mesmo apelo expressivo se apresentada de maneira consecutiva com o tradicional encadeamento de fatos.

 

 

Em Nessa Boca que te Beija (Editora Patuá – 2019, com ilustrações do autor), Leonardo Almeida Filho – um dos mais hábeis prosadores da literatura brasileira atual – constrói o personagem Luis e sua história a partir da colagem dos cacos que o constituem, como se empreendesse um talentoso e bem cuidado trabalho de restauro de uma delicada peça que, por motivos e circunstâncias desconhecidas, tivesse se espatifado. E procede reunindo fragmentos que ora funcionam como contos, ora ensaios, ora crônicas, com a ocorrência de alguma poesia… Um mosaico de gêneros a compor, com esmerada complexidade, a simplicidade da trama do romance em que resulta.

 

 

Para nos apresentar seu atormentando protagonista Luís, Leonardo Almeida Filho conta a respeito da velha vizinha do prédio; fala das memórias paternas, cheias de graça; traz as lembranças dos medos pueris; reflete acerca dos momentos de esgrima com a lida de escrever (e que digressão,  metalinguística, estética e política, posta sem vírgulas a roubar-nos o fôlego!); mostra a busca por inspiração para a arte e para a vida (como se fossem construções distintas); presentifica memórias maternas, dos avós, dos vizinhos da infância, de animais e até de árvores de estimação;  pondera sobre os medos adultos; narra fatos contemporâneos e do passado recente; tece comentários acerca de alguns autores literários (existentes e fictícios) e suas obras (cita Borges diversas vezes, direta e indiretamente e, a seu modo, inventa e lê e analisa autores e livros inventados como um tal Franz Lüge – “lüge” em alemão é mentira); faz interessantíssimas considerações nos campos da antropologia, sociologia, economia. Desfila, enfim, um assombroso acervo de fragmentos discursivos, ora com caráter narrativo, ora analíticos –  beirando breves ensaios -, que funcionam como contos independentes, até o ponto em que mais de um conto, propriamente ditos, alheios à narrativa principal, são interpostos a compor ou ilustrar o enredo maior. 

 

 

Verve vulcânica a deitar a lava da indignação com a situação humana, interior e exterior, bem no limiar em que se chocam o ideal exilado e o real destroçado, como numa superfície onde a cola do restauro quase não adere e as dissociativas cicatrizes da fragmentação restam num monstruoso desenho da inútil busca por reintegração.

 

 

Em Nesta Boca que te Beija, os fatos, memórias, digressões, especulações são apresentados em imensos e muito bem cadenciados parágrafos saramagoformes, todos atados aos fatos e às suas repercussões internas, em profundas reflexões, contrariando o próprio personagem Luís que afirma: “a dor da gente prescinde de teorias”. 

 

 

Um denso romance psicológico, pós-moderno, pós-freudiano, repleto de citações referencializadas nas artes, na filosofia, na ciência, postas num fluxo de livre associação de ideias que compõem os pensamentos que se somam, multiplicam, subtraem, dividem no ato da própria escrita, segundo uma equação muito harmoniosa, cujo resultado é a construção da memória, da autoimagem, da tensão entre realização e frustração, do entendimento e da aceitação de si, que traçam o percurso do fictício personagem central, cuja biografia confunde-se com a do memorialista autor, numa narrativa em voz própria, intermediada por uma rara terceira pessoa neutra e por muitos ecos de vozes votivas, postas como testamento e augúrio pela reconstrução de um eu partido entre os irresgatáveis anseios acerca de si mesmo e a constatação crua dos resultados auferidos, ambos aferidos nessa inquisição pela identidade de si próprio.

 

 

O leitor posta-se diante dessa profusão de imagens, fatos e digressões, como um voyeur a se deliciar com a reconstrução de uma complexa consciência que se mostra, sem filtros que não os da disposição estética em termos de composição literária, num jogo de luzes e sombras a expor e escamotear as motivações e aspirações do personagem-autor.

 

 

Um elemento condutor da trama difusa é uma tal personagem denominada Ela (“Nego-me a dizer o nome de Ela, pois ela não tem nome, tem nomes e portanto não tem dono; dar nome significa se apossar da coisa e Ela aquela coisa, nunca foi minha realmente”). Fio de mistério que nos conduz, como numa terapia em busca do trauma, esticado como corda tensionada entre o erótico desejo de vida e o desconsolado apercebimento da morte, irreconciliáveis pulsões a nos guiar pelo escuro das neuroses.

 

 

Se você é, como eu, desses leitores que anotam as referências encontradas numa leitura, separe um bloco inteiro para este livro, pois ele, acredite, percorre toda uma vasta, diversificada e erudita biblioteca de títulos que compõem grande parte do saber necessário a resturar a complexidade do fragmentado homem moderno afogado em sua paranoia que apenas a boa literatura, outra paranoia em si, é capaz de compreender. Compreender, sim. Salvar? Não!

 

P.S.: Na dedicatória que me fez, Léo anotou: “Ao meu amigo Luiz Eduardo de Carvalho, este relato paranóico – a literatura não é uma paranoia?”

 

Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor de arte e cultura, gestor cultural nos âmbitos público, privado e do terceiro setor. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária. Publicou: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá; Quadrilha (2020 – novela) pela Editora Patuá; Frasebook (2020 – aforismos) pela Edições Karnak; Evoé, 22! (2021 – dramaturgia) pela Editora Patuá.

 

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