5 poemas de Ode menina | Nuno Brito
Cura
É preciso acender o mundo
com a boca.
Com o sol da nuca.
Com o coração.
São precisos todos os faróis.
São precisos todos os relâmpagos.
Todas as palavras
são precisas
Para acender o mundo.
É preciso
No fundo de um rio
Uma pedra
uma ideia de liberdade
No centro do coração.
Um chapéu na cabeça
Talvez.
É preciso olhar com mais atenção
Para uma pedra
Para um rio
Para uma árvore.
É preciso olhar com toda a atenção
Para o interior de cada ser
E ver nele o teu fundo
Mais sincero
(Mas tu não tens fundo
tu não tens fim.)
É preciso em cada estrada uma curva
Em cada deserto uma sombra
Pegar numa corda
E fazer um baloiço
Amarrado a um tronco seguro de uma árvore
levar uma memória até ao paraíso
Apagá-la para sempre:
Acender todo o caminho
Como uma cura
Em tudo maior
É preciso em cada mão
Outra mão
Até a sabedoria ser a nossa anatomia
É preciso acender o mundo
Com toda a luz do coração.
***
A fazer hoje:
Escrever um poema sobre a liberdade e vê-lo arder.
Vivo.
Como uma mãe.
Escrever no centro do coração que o amor é o homem inacabado.
Respirar.
Respirar.
Respirar.
Pedir pouco.
tão pouco…
quase nada.
Olhar de frente o sol.
Agradecer.
Olhar de frente a estrela mais pequena.
Agradecer.
Ver um caracol subir um vaso, uma planta, comer uma folha, abandonar a sua casa.
Agradecer que se tem família, agradecer que se tem amigos,
Olhar uma flor roxa fechar-se na noite.
Empurrar a minha filha no baloiço.
Dizer-lhe que nunca tenha medo.
Abraçar a Ale.
Tomar um café quente.
Pedir pouco.
Tão pouco.
Quase nada.
***
Não te esqueças
De levar o melhor de cada um,
a potência plural de cada um,
o olhar mais sincero de cada um
quem te salvou,
quem olhaste nos olhos,
quem amaste profundamente
quem amas profundamente
com toda a luz do teu coração.
Não te esqueças de te sentar no lugar mais improvável,
por exemplo:
em frente de uma repartição no domingo, às três horas da tarde
na berma de uma autoestrada, no meio de um estádio vazio,
a meio do trajeto para tua casa,
de te sentares na berma,
de pôr as mãos no joelho
de respirar profundamente;
de não esperar nada de ti nem de ninguém –
de esperar tudo – absolutamente tudo – de ti e de toda a gente.
De aproximar uma folha dos olhos.
De imaginar o mar prateado
de comer a dobrada mais fria,
de fazer festas a um cão malhado:
e Arder. Arder. Arder.
Que amanhã dez mil borboletas vão chegar a Michoacan,
que para os gregos humanidade era um verbo,
que tudo é caminho e perder-se faz também parte do caminho,
que virar certas páginas é um incêndio
que este é um poema para a vida
que os animais não choram –
que os animais não riem –
que és um animal privilegiado
que afinal os animais choram e os animais riem
e que tens de esquecer tudo novamente
e aprender tudo outra vez a cada segundo que passa,
que uma pessoa é uma coisa que arde,
que madura, que ri, que se sustenta dentro de um fio,
que agora mesmo alguém cai abruptamente,
que uma estrela do mar é virtualmente eterna
e pode nunca morrer –
que um poema pode nunca morrer –
que um poema nunca morre – que na verdade (e talvez virtualmente)
morremos a cada segundo (com um relógio no pulso)
que agora mesmo, no centro da América, uma mãe decide não respirar,
dançar por dentro, nascer novamente,
que, devagar, um caracol sobe um muro branco numa aldeia da Sicília
que um homem começa a sua marcha,
que nada se detém quando um homem começa a sua marcha,
que um continente pulsa,
que só podemos ver com os olhos dos outros.
Não te esqueças de perder uma chave,
de chegar atrasado a todos os compromissos,
de te sentar a meio do teu percurso,
no lugar mais inesperado, na hora mais inesperada,
De respirar fundo
De arder…
Não te esqueças.
***
Rir dos poemas
A Gisel não gosta de poemas.
A Gisel gosta de rir dos poemas.
Rir dos poemas é gostar mais dos poemas
do que gostar só de poemas.
Rir dos poemas é respeitá-los verdadeiramente.
É entrar nos poemas
como num casulo quente
ou numa camisola de lã muito grossa
na noite mais fria do inverno,
e sentir as camadas grossas dos cobertores e a esperança e o futuro.
Rir dos poemas é humanizá-los por dentro
e transformar-se numa borboleta
ou num pirilampo
ou num outro ser humano
que só por acordar numa outra manhã
é já outra ser sobre a terra.
Porque agora mesmo
O mundo é outro mundo.
Um mundo novo.
Porque agora mesmo o mundo se enche de paz.
O mundo se enche de liberdade e de sol.
Porque agora mesmo
O mundo se transforma numa estrela.
E rir é a parte mais importante da luz do mundo.
E rir dos poemas é escrevê-los outra vez
com todas as cores que há sobre a terra
e amá-los e comê-los como se ama a humanidade inteira
só por cada ser humano ter um grande e plural caminho pela frente
e ser muito parecido com um caracol
que sobe devagar uma pedra aquecida pelo sol.
Rir dos poemas é fazer a festa de anos que eles merecem
Com o confetti e os balões de todas as cores
E ter os amigos por perto
a comer um grande pudim feito com muitos ovos
ou uma rabanada muito grossa na noite de Natal
e ter um espelho e ser criança e ser feliz.
Rir dos poemas é fazê-los subir.
Como um balão numa noite de São João,
Ou então ser um cão
Com a cauda a abanar
ao lado de um moinho
Que não para de rodar.
Rir dos poemas é ser feliz
e amá-los verdadeiramente.
Como eles merecem que os amem.
***
O nascimento de um dente de leão
Primeiro uma menina sopra.
As sementes espalham-se na terra húmida,
o coração do sol conta um segredo de luz e espuma.
A chuva cai silenciosa.
Primeiro um caule tímido rompe a terra,
depois as sementes brancas
uma grande cabeleira de estrelas,
cresce com o orvalho da manhã,
Depois BLUMP, com força,
vem uma menina e diz:
Nasceu um dente de leão!
E sopra-o com força outra vez.
Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É autor dos livros de poesia: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015) e O Desenhador de Sóis (2017).
É leitor do Instituto Camões na Universidade da Califórnia em Santa Barbara onde vive desde 2015 e onde obteve o Doutoramento em Literaturas Brasileiras e Portuguesas, foi professor de Literatura Portuguesa na Universidade Nacional Autónoma do México onde viveu entre 2012 e 2014.
Foi editor da revista literária Cràse e publicou em diversas antologias de poesia em Portugal, Espanha, México e Grécia, entre as quais a Antologia da Jovem Poesia Portuguesa (Atenas, Valkixon, 2021), a Antologia Lluvia Oblicua: Poesía Portuguesa Actual. (México: Círculo de Poesía, 2018), O Binómino de Newton e a Vénus de Milo: Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa, organização de Vasco Graça Moura e Maria Maria Bochicchio (Lisboa: Aletheia, 2011) e Antologia Jovens Escritores 2008 (Lisboa, Clube Português de Artes e Ideia). Foi distinguido por duas vezes com o Prémio da Associação de estudantes da Faculdade de Letras do Porto na categoria de Poesia e Conto e foi selecionado para a Mostra Jovens Criadores (Literatura) 2008 em Lisboa. É coordenador editorial juntamente com Maria Bochicchio da colecção Novíssima da editora Exclamação.
Ode Menina é o seu quarto livro publicado pela editora Exclamação e reúne textos escritos entre 2018 e 2021, assim como alguns textos publicados anteriormente em livro.