Cultura

A felicidade é uma histeria coletiva

A felicidade é uma histeria coletiva.

 

Tenho presenciado tantas guerras e desastres. Meus e de outros. E no entanto os meus pulsos continuam intactos.

 

Perdemos o caminho do Grande Paraíso.

 

Escrevo para destruir sinapses antigas.

 

E por isso vivo em perfeito e contínuo estado de espanto.

 

Busco alcançar a mão do outro lado. Peço interlocução no debate.

 

‘Tenho sede.’ Disse o homem na cruz.

 

Clarice e o ruído dos passos. Eu velha a me arrastar pela casa e a dizer sobre o desejo: ‘Quando isso vai acabar?

 

Ah os dias, os desejados dias em que sou supérflua e vã.

 

Mas hoje essa dura inquietação.

 

Não durmo após o almoço. O que gosto imenso de fazer.

 

O que sinto é sem ressalvas. Esqueci como se elabora as letras, desaprendi a finalizar o bordado.  O deixo assim à mostra, jogado na velha cadeira das minhas impaciências. O lado avesso com suas linhas em luta, as pontas brigando com os nós. Parece que gosto de desagradar o mundo. Minha mãe me reprovaria esse capricho. Ou o marido. Se eu tivesse um.

 

Acontece que sou selvagem e belicosa. Sei ser doce apenas se me pedem para não sê-lo. Gosto do anti natural das coisas. Que acredito ser o estado mais natural a nós. Desde que não haja padres e catequizadores para nos dizer o contrário.

 

Aliás quem nos vestiu a primeira roupa? Quem nos disse o primeiro ‘Cuidado, está frio lá fora.’ ou ‘Está  demasiadamente quente.’?

 

Enquanto crianças, alguém achou por direito nos desentortar a sola dos pés e desde então andamos assim, com esse ar de fantoche, com esses olhos vidrados que são como telas a reproduzirem outras telas. Repetições. Perdemos o tato e viramos eco. As palavras me exasperam, a luz de entendimento que elas me trazem também. Temo perder a compostura ou ternura farta dos dias e me transformar na velha louca que grita absurdidades no parque e para a qual os passantes atiram pão e grãos de milho como se alimentassem uma ruídosa gralha. 

 

Mas não. Tenho bons amigos. Amigos que me levarão para um asilo e me entupirão de remédios e me dirão:

 

‘Comporte-se. Você sempre foi tão doce e inteligente.’

 

E eu cuspirei o mingau ralo em suas fuças. E eles se ressentirão por isso. E eu me ressentirei comigo mesma por constatar que do ato não guardo remorso algum.

 

Mas volto ao presente. Dá medo brincar de ser quântica. Sei que essa inquietacão passa. Se até as mais retumbantes paixões fenecem. A culpa é do calor extremo que faz em Lisboa nesse momento. Tenho vertigens e palpitações nessa terra de mouros. E gosto dos mouros. Mas não hoje. Hoje não gosto de nada que possua forma definida. É o delírio do deserto, é o lenço negro na cabeça das senhoras que vejo na rua. O suspirar delas é uma reza tosca e mal pronunciada. 

 

‘Chegaremos no grande lugar onde há sombra, mana e mel. O paraíso ainda não se perdeu de todo de nossos olhos! 

 

Alguém grita ou ao longe.

 

‘Adiante! Adiante!’ 

 

Outro alguém, esse um profeta, acrescenta.

 

Sim. Constato.

 

A felicidade é  uma histeria coletiva.

 

Beatriz Aquino é formada em Publicidade e Propaganda e é atriz de teatro. Tem publicados os livros:  Apneia (romance), A Savana e Eu (crônicas), Anne B.  – Sobre a Delicadeza da forma (romance) e Caligrafia Selvagem, lançado em Julho de 2020. Vive atualmente em Portugal.

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