Cultura

Vento vadio

Há um vento vadio lá fora. Diverte-se enfiando-se entre as flores, balançando os galhos, levantando a poeira. Passa por minha janela aberta, traz ares de inverno para cima da mesa de trabalho. Continuando assim vou precisar fechar o ambiente. Ele, insolente, esfria minhas orelhas, nariz, deixa meu pescoço arrepiado. Já deveria ter corrido o vidro, resguardado o escritório. Mas atraso-me por desejar respirar geladinho. Abro a boca, puxo o frescor. Revigoro-me. Preencho os pulmões de vida.

 

De uns tempos para cá tem sido assim. Vez ou outra pego-me distraído lendo as notícias, correndo as telas do computador impressionado com a escuridão veiculada. A gente foge do texto que precisa escrever em um clique. Quando a dificuldade se apresenta, as palavras negando-se a obedecer, mudamos quase raivosamente de tela, distraímo-nos recorrendo aos relatos internéticos. Então vou entristecendo aos poucos, mergulhando em agonia, talvez necessitasse ser menos susceptível. Não consigo. Aquilo sangrando no visor acaba por me deprimir, começo a inspirar com dificuldade. O vento vadio lá de fora me socorre. Invade o recinto, atira duas folhas da impressora para longe, menino brincalhão, ventila meus pulmões.

 

Às vezes ele traz também ruídos. Talvez não seja assim tão chegado ao ócio. Por mostrar-se pouco objetivo, assoprar indiscriminadamente, passa a impressão de estar indolente, perdido em malandragens. Mas acaba sendo diligente em seu ofício. Venta. Até que venta. E quando traz o barulho lá de fora, transforma em inferno a quietude triste do lugar onde busco frases.

 

 Há um prédio crescendo na vizinhança. Acompanho sempre o evoluir da construção. Caminhões virando concreto, motores ligados, ensurdecem meus ouvidos. Não percebo imediatamente o incômodo. Aquilo se agiganta a princípio no inconsciente, até por estar ali o dia inteiro.  Estacionam as betoneiras e ficam até tarde da noite. Desrespeito! Tornam-se quase naturais os decibéis encorpando-se. Eles, sorrateiros, tentam ganhar ares de intimidade conosco. Não conseguem. Em algum momento nos percebemos em agonia extrema. O espírito debatendo-se, afogado em sensações a princípio difusas, mas capazes de irem ganhando sentido. Terminamos reconhecendo o motivo de tamanho mal-estar, ansiosos por um pouco de silêncio. Em vão. O estardalhaço mantém-se vivo, babel, enlouquecendo-nos. 

 

Fecho a janela. Suspiro apercebendo-me da ausência de sons. A respiração ainda está funda, talvez pelo tormento afastado em parte. A algazarra, embora mais distante e em menor volume, ainda permanece. Aos poucos recupero o fôlego, os batimentos cardíacos diminuem, fico parado, os olhos iluminados pela fluorescência emanada do monitor.

 

O vento, definitivamente não completamente vagabundo, traz também odores lá de fora. Mesmo com o ambiente vedado. Imiscuem-se por frestas os mais variados cheiros. No andar de baixo fritam alguma coisa, aguçam meu apetite. Da calçada vem uma fragrância de jasmim, às vezes. Quando a noitinha se aproxima, frequentemente, percebo a dama-da-noite. Tenho medo. Não sei por qual razão acompanha a exalação adocicada memória de meu pai fumando. Nem sei bem se é mesmo apenas recordação. Parece tão real… Ergo a cabeça lançando o nariz para cima feito perdigueiro. Há mesmo fumaças de cigarro no escritório. Mas quem, onde? Eriço os cabelos. Brancos. Em pé.

 

Volto a escancarar a persiana. O vento vadio diverte-se. Frio, sons, eflúvios. A agonia torna a se apresentar agora mais intensa. Tem sido difícil escrever durante a pandemia. Considerei que seria fácil logo no início. Enganei-me. Palavras perdem-se entre sensações difusas, incômodas demais.

 

Junho/2021 

 

Ricardo Ramos Filho é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior.  Professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela USP. Ministra cursos e oficinas, trabalha como orientador literário. É cronista do Escritablog e da revista InComunidade.  Presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio proprietário da Ricardo Filho Eventos Literários atua como produtor cultural. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

 

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