Mônica de Aquino


“Porque não são apenas momentos de felicidade, que para mim era tudo o que tínhamos. É uma felicidade que se espalha.” Escolho esta frase de Maggie Nelson, do livro Argonautas, como epígrafe da série do meu futuro livro, ainda sem nome, dedicada à observação da minha filha. A vivência da pandemia trouxe ainda outra dimensão aos textos, e o isolamento total dos primeiros meses também aparecem nestes poemas. Eles são parte de uma seção maior, em que esse olhar para o infraordinário volta-se também para a casa, os detalhes da convivência com o meu marido misturados a pequenas memórias, também cotidianas.
Acho que este é o meu principal posicionamento político hoje: observar o dia a dia, as experiências mais corriqueiras e buscar multiplicar as lentes, os ângulos, valorizando temas considerados muitas vezes laterais, talvez por serem culturalmente mais ligados à mulher. Tal poética retoma e renova, de certa forma, o que fiz no meu penúltimo livro, Continuar a nascer, em que falo da gravidez e do nascimento da minha filha. Fazer do nascimento um movimento contínuo, múltiplo, vejo que é mesmo isso que me traz a maternidade – e tudo o que vem junto com ela.
Retomo, aqui, três poemas de Continuar a nascer, junto a dois do meu próximo livro. Para quem quiser ler um pouco mais, mostro uma seleção similar em outra revista internacional, a anglo-brasileira Capitolina, número 9.

Capa da obra Continuar a Nascer, de Mônica de Aquino

Imagem da obra Continuar a Nascer, de Mônica de Aquino.
50% a mais de sangue
para o mesmo coração, ou será outro
com as mesmas vísceras, ou outras
a mesma história, ou é outra
que conto a cada dia a você
que se forma, arbitrária.
A vida exige água, carne, tempo
para dois corações novos:
coração-placenta, em cripta
que guarda o seu, subterrâneo
céu que se oculta
big bang particular
O corpo exige estrelas, movimento, aposta.
Tudo é excesso, agora, da sala ao quarto
atravesso um deserto, pulso
taquicardia de um sol interno
mar que se afasta – e se engole em ondas –
A areia da infância, tudo me atravessa
o sangue novo mergulha
uma promessa
você é minúscula e já toma a casa
o que expulsa: passado, futuro
o que exige, só uma urgência
ancestral
cada batida é volta
para onde, quando, volta
crescem pelos, curvas, sombras,
hipóteses
“tudo aponta para o crescimento”, a médica explica
mas há também o que escapa
seu sangue misturado ao meu
o que em mim é início ou retorno,
o chamado do chão
do corpo
- devolvida –
a que mistério e silêncio
O amor possui outra matéria
desconhecida
em explosão

Imagem da obra Continuar a Nascer, de Mônica de Aquino.
Dentro, tão dentro, puxa-me, mergulho o labirinto:
que minotauro há para destruir, agora
o que foi monstruosidade, será calma
ao final, o fio leva para fora da origem
o mesmo cordão umbilical
mapa:
negar o caminho, desfazer as pegadas
de cada ancestral, só as estradas
não percorridas, a vida no avesso
da trama
(as cidades destruídas)
construir um mundo novo para você
- sair deste labirinto em voo -
refazer as linhas da mão
(você me estende a sua)
outro destino será inventado:
nascer interrompe ultrapassa o tempo.
Setenta vezes sete gerações para perdoar o passado.

Imagem da obra Continuar a Nascer, de Mônica de Aquino.
Parto: palavra para o nascimento.
Termo de uma gravidez.
Ato ou efeito de parir.
Primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo partir.
Que pode significar: ir embora, deixar um lugar
: separar, dividir
: quebrar, destruir
Parto: o que separa, o que deixa, o que nasce.
Parir é dissolver, transpor, rebentar.
Ou: nascer é partir.
Ela aprende os contornos e superfícies com a boca.
Classifica o mundo pelos seus sons:
Uuuuhh é a coruja, enquanto o mesmo barulho duplo, ritmado
nomeia os macacos em volta, nos livros, na pelúcia.
Iaaááá é como convoca os animais com boca larga
simulando a abertura:
jacarés, dinossauros, lobos.
Zzzz são as abelhas, o ruído acompanha o movimento dos braços
como asas e se estende ao conjunto dos pequenos insetos.
Todas as fissuras e defeitos que vê são feridas
que ela cura com beijos: os lábios alteram a parede arranhada
as marcas no braço do pai, a costura malfeita de um brinquedo
e beija também a si: "mah!" é o som junto ao gesto
como um abracadabra que inaugura os dias.
Há outras categorias: "bom dia" é o nome de todos os sóis.
Classificação pelas funções: qualquer objeto côncavo é um pote
que guarda bolas, peças de lego ou de quebra-cabeças
o trem risonho pode ser carro ou ‘passear’
e a ele acompanha, agora, outro barulho e traço:
a filha imita um choro, o pequeno carrinho chora, depois dorme.
Não entendo a brincadeira, talvez ele sonhe a rua
estamos presas no apartamento há 75 dias.
Ela o embala numa cantiga como se fosse um bebê.
E me acalma: o sono de todos os meios de transporte
é também o nosso, mamãe, mas este quarto é imenso
tem cabana, aquário, torres e dinossauros
bichos da selva ao lado das gatas que lambem a espera
abelhas do tamanho de girafas, sapos que saltam da sua
própria infância, e livros, tantos livros misturados
também pequenos monstros, roupas espalhadas, almofadas
a vida é macia aqui, e imensa, nela cabe o futuro
a praça, os prédios e árvores, cabe nascer e morrer.
Ela me embala como se eu fosse um bebê.
Minha filha gosta de brincar com fios
de cabelo ou roupa
estende-os muito concentrada, observa
leva à boca, estica de novo
presenteia-nos, exige de volta
testa os movimentos dos dedos
e as texturas mais ínfimas
como se tentasse entender
a matéria bruta das coisas, a origem
é ainda acúmulo, recua:
recolhe um pelo de gato
um grão, este cisco, a menor partícula
de poeira sobre o chão
e observa, observa
engole.
Para começar, de novo, a expansão.

Mônica de Aquino e Manuela, a Manu.
Mônica de Aquino (1979), nasceu em Belo Horizonte. É autora de Sístole (Editora Bem-te-vi, 2005), Fundo Falso (Relicário Edições, 2018), Continuar a nascer (Relicário Edições, 2019) e Linha, labirinto (Edições Macondo, 2020). Fundo Falso venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 2013 e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019. Publicou, também, cinco livros infantis, todos pela editora Miguilim. Participou de antologias como Roteiro da poesia brasileira 2000 (ed. Global) e A extração dos dias (Escamandro) e tem poemas publicados em periódicos do Brasil e do exterior.