Helena Barbagelata


Diz-me, onde estarias há não muito tempo, nós, os filhos de ninguém, a dádiva do hoje já foi um borrão, uma pústula, nos panfletos do ontem, uma intersecção, malquista, de adjectivos diabólicos, diz-me, usar-te-iam como modelo, eugénico, como a fototipia, estampada da irreal prógenie da pátria, só para que corrida a tela final, te cortassem os arianos cabelos do ouro escorchado das minas de Ofir, vendendo cada cacho para costurar uma peruca, jude, que ornasse a cabeça careca e putrefacta de todos os poderes, onde estarias;
Processionando o teu escafismo pelas ruas, com a nuca rasurada, humilhada, roja, e o engasgo do rícino a arder pela garganta, vinde ver, a desfilada, da miséria herética do teu corpo estuprado, por mil artilugios medievais, mutilado, excrementado pelas praças, entre aplausos e urros, despejada a tua carne exposta, de cara ao sol, a gangrenar salmos de arrependimento;
Onde estarias, se lenientes, deixar-te-iam tocar a tua própria marcha fúnebre, apátrida, encaixar o violino do teu avô por uma última vez, na reentrância dos teus ombros vazios, com o praguicida a estertorar o teu sopro, e um coro de vozes moribundas clamando em crescendo, a agarrar-se às paredes das câmaras, para que não as levasse a morte, e o teu coração, chamuscado, atirado para dentro de um saco como uma barra de carvão, a aquecer as lareiras dos senhores da guerra, um pedaço entre os pedaços, assim te indiciam as crianças nas cartilhas das escolas;
Levar-te-iam no camião do gado, com o lombo inflamado pelos ferros de marcar, tempo atrás de tempo, anarquista, queimando rótulos e códigos de barras de ignorância, na carne de qualquer inocente, de qualquer forasteiro, sentenças premeditadas e contagens decrescentes para o abismo, o trabalho liberta, mas nós, estamos a acender os nossos círios antes do sol se pôr, enquanto a música desalgema o peso da semana dos nossos tornozelos, e todo o trabalho é proibido,
E um dilúvio de danças coloridas inunda o largo como uma onda perpétua, e a nossa canção de liberdade, ascende soerguida sobre as vossas ordens, como uma carta de manumissão rubricada pela alma mesma,
Só o amor poderá libertar-nos
Só o amor poderá
Só o amor.

Helena Barbagelata (1991). Modelo, artista multidisciplinar e activista. Estudou Política, Literatura e Filosofia. Recebeu vários prémios e bolsas internacionais, da Onassis Foundation/Universidade de Atenas, Universitat de Barcelona, Università degli Studi di Trieste, entre outras. Desenvolve trabalhos em pintura, ilustração e escultura, tendo sido exposta na Europa, América do Sul, Estados Unidos e Australia. Helena é também curadora e colunista em diversas publicações literárias.