Henrique Dória


NLD 1
Chegou o outono. As primeiras chuvas após um longo estio. As folhas caem com calma abandonando a vida, ou com violência fustigadas pelo vento que começou a erguer-se todas as manhãs. As pessoas começam a inclinar-se como que movidas por uma bebedeira triste, aceitando também a sua condição de árvores.
Já vindimei, já esmaguei as uvas, já afundei o bagaço no vinho durante sete dias, três vezes ao dia, já passei o vinho para as cubas e, agora, é o tempo de ele repousar.
Outrora, quando existia a aldeia e a aldeia existia em mim, e tudo era nítido, tanto o orvalho das manhãs como as estrelas da noite, quando, ao fim da tarde, os bois pacientes regressavam a casa, eu via o lume transformado em fumo a sair pelas chaminés. O fumo era claro e melancólico como as vidas que se iam perdendo.
Hoje, esforço-me por regressar à terra, mas este meu esforço é contra a minha verdade, pois eu já não sou o mesmo que era quando ainda criança, e tocava os bois para casa, e me deitava na terra a sonhar de olhos abertos como sonham as estrelas, e assim respirava a terra e o céu, e ambos respiravam suavemente em mim com a força serena dos deuses. Já não ando descalço como quando brincava à cabra cega nem com as calças rotas como quando subia às árvores mais altas para tocar a penugem dos pequenos milhafres.
Tudo mudou em mim e eu em tudo. Sem cura é esta mudança.
NLD 2
Nunca regressaremos a nós mesmos. O eterno retorno é uma fantasia dum inadaptado. De cada vez que queremos regressar a nós mesmos encontramos em nós um ser diferente, como quando regressamos às águas que passam por debaixo da ponte.
A nossa sabedoria e a nossa força estão em sabermos ser outro em águas novas.
NLD 3
Quero controlar os meus pensamentos mas, tantas vezes, não o consigo. Ontem, quando caminhava pela rua olhando as folhas de Outono que mudavam de cor em direção à queda, o pensamento desviou-se para uma mulher desconhecida, que vi uma só vez na vida e nada tinha de diferente de tantas outras mulheres, nem sequer os seios abundantes que sempre atraíram o meu olhar. Ela estava só, deitada na praia e, subitamente, levantou-se, penteou os cabelos longos e bastos, negros e fortes como penas de corvo e, depois, caminhou vagarosamente em direção o mar para se lançar às ondas.
Admirei-me por me surgir esta lembrança tão remota e sem sinais que me pudessem marcar. Sorri deste absurdo mas, logo a seguir, veio-me à memória o nome de Maldini, nome que já não ouço há largos anos e nunca me impressionou mais do que tantos outros futebolistas famosos, e nem sequer estava entre os que melhor conhecia.
Sou e não sou responsável pelos meus pensamentos. A quem atribuir a culpa daqueles que não chamei a mim e são cruéis ou baixos, mas surgiram no meu cérebro contra a minha vontade?
Sou senhor dos meus pensamentos mas eles são, também, senhores de mim. Sou livre e dominado pelo que não desejo ou repudio.
Sonho enquanto durmo, sonho quando estou acordado. E o sonho sonha-me. Eis uma das sete fontes do meu desassossego.
NLD 4
Creio que todos os homens são fragmentos de Deus que trava consigo mesmo um vão combate, um Deus que nasceu adulto e mau, que nunca teve uma mãe que O deitasse no regaço e Lhe acariciasse os cabelos loiros, Lhe cobrisse a face de beijos, Lhe contasse histórias de princesas belas e bondosas e bruxas feias e más com agulhas a picar dedos de cetim, O entusiasmasse com o triunfo de príncipes valentes e Lhe cantasse canções de embalar até Ele adormecer no lume do inverno.
Mas esse Deus adulto e mau também quer ser criança e bom, e creio que esse combate que Ele trava consigo mesmo não terá fim, nem terá fim o Seu reino ao contrário de todos os reinos, a não ser quando tudo tiver fim, que será o fim desse Deus porque todos os Deuses têm em Si a semente da destruição.
Existem estrelas, existem cometas, existem meteoros, e Deus tem medo porque estão longe e não foi Ele que os criou, e Ele interroga-se se não existem outros Deuses além Dele, outros Deuses tão infinitamente grandes e poderosos que desprezam a Sua pequenez terrena.
Creio que Deus tem tanta maldade porque tem medo, e o medo é o Deus de Deus.
NLD 5
DIÁLOGO IMAGINÁRIO
Francisco de Assis
- Todo o saber do homem é vão e todo o seu poder uma torre arruinada, Frederico. De que te serve o teu saber contra a morte? Acaso matarás um dia a ceifeira do tempo? Acaso lhe poderás dizer, numa das nove línguas que te orgulhas de falar: vai-te, quando ela se aproximar? Ela compreender-te-á numa dessas nove línguas, ou precisarias de novecentas e noventa e nove para ela te entender. E, ainda que as soubesses, isso seria suficiente face à sua eterna mudez? Falando à morte apenas enches a boca do vento do teu orgulho. Existes antes das estrelas ou das montanhas para conheceres a sua criação? Sabes o que se encontra dentro das sementes para que elas rompam a terra, cresçam e te deem pão? Conheces a sabedoria íntima do sol quando te aquece ou a indiferença do gelo quando se abate o inverno? Compreendes a luz do dia ou as trevas da noite?
O teu poder não passa de cinza dentro duma urna de pórfiro. Sais com a espada e o escudo a enfrentar os teus inimigos. Contra ti eles não escaparão à morte ou à humilhação. Cegarás os seus olhos e cortarás os seus narizes, deceparás as suas mãos e os seus pés. Deixarás as suas cidades desoladas e os seus campos devastados pra que não lhes deem pão, as vinhas e as oliveiras queimadas para que não lhe deem frutos. Mas hordas e hordas surgirão com os tempos.
Sempre, todos os impérios foram destruídos pela espada e pelo fogo. O teu império não escapará. O teu orgulho será abatido. Não te enganes a ti mesmo.
Frederico II da Suábia
- Apenas tento compreender, Francisco. Se escrevo ao sultão do Egito ou leio as suas cartas sábias convidando à paz e à aceitação das nossas diferenças, propondo o simultâneo rebater dos sinos com o convite dos muezins à oração, é para que as ruas das cidades não se tinjam com o sangue dos homens. Há um só Deus. Os seguidores de Cristo dão-lhe um nome, os infiéis outro. Mas eles O veneram com o mesmo fervor com que nós adoramos o Criador, o Todo-Poderoso que está por detrás desses nomes. Construí esse castelo no alto da tua cidade para que a não destruam os orgulhosos e os sôfregos de poder e de riquezas. Sem ele, os desventurados seriam esmagados como as ervas sob as patas dos cavalos. Sou imperador para defender os humildes da arrogância dos poderosos. Os meus inimigos erguem a espada para me degolarem, abrem a boca para me devorarem. Mas o meu poder foi-me concedido por Deus para travar as suas iniquidades. A coroa imperial foi colocada na minha cabeça pelo Seu representante na terra para que eles não exerçam a sua violência sobre os mais fracos, e não os sufoquem com o manto da sua maldade.
NLD 6
Deuses são relógios que nos acordam do tempo passado e nos alertam para o tempo que há-de vir, relógios misteriosos que nos dizem o que somos através do que iremos ser.
NLD 7
Quando os espelhos se transformam em cachimbos e os cachimbos em sombrinhas por meio do sonho que irrompe das mãos, é sinal que conservamos a essência do nosso ser.
Neste mundo da técnica, o homem só alcança a sua essência e a sua grandeza quando ama acima de tudo as coisas que não têm qualquer utilidade.
