Flávio Sant’Anna Xavier


Um dos vezos da política brasileira é analisar os pleitos eleitorais já projetando os próximos. Neste imenso território, as eleições municipais voltam-se aos problemas cotidianos dos eleitores, num ambiente onde as questões ideológicas não se apresentam como fundamentais nem tampouco as alianças obedecem a tal lógica. No interior profundo por vezes se digladiam apenas dois grupos, onde a alternância é o grande debate, quando de fato ele existe.
No entanto, nas grandes cidades, desde muito tempo, é possível que alguma intrusão das questões mais nacionais ocorra, mesmo porque a capilaridade de cada partido também repercute numa eleição mais geral, inclusive a presidencial. Na época da ditadura, por exemplo, a vitória esmagadora do MDB era o prenúncio do esgotamento do modelo autoritário.
O que chama atenção no último pleito municipal foi a elevada abstenção. A pandemia da covid-19 foi decisiva para que grande contingente não exercesse seu direito ao voto. De um lado o risco para alguns grupos mais vulneráveis, mas também forte e crescente desencanto diante de uma democracia fatigada. Em alguns importantes centros, como São Paulo e Porto Alegre, a abstenção chegou a 30,8% e 33,8%, respectivamente. No caso de SP o índice superou o recorde histórico e na capital gaúcha ela foi a mais alta do país, em parte pelo grau de idosos em sua composição.
Afora tais questões, a facilidade na justificativa do voto, agora possível com o próprio celular, atacam o voto obrigatório e burlam o comando legal, um dos cânones da democracia brasileira.
Apenas olhando os números de eleitos verifica-se o enxugamento da participação petista no eleitorado. Há outros números comparativos, porém basta verificar que o PT não elegeu nenhum prefeito de capital, fato inédito desde a redemocratização. Há o caso emblemático de São Paulo, onde o candidato petista, ungido pela máquina partidária, teve votação pífia, em contraponto à passagem de Guilherme Boulos (Psol) para o segundo turno, em chapa pura e com mais de dois milhões de votos.
Aliás, no campo da esquerda o PSOL foi o grande vencedor. Formou bancadas nos principais legislativos do país (dobrou o número), numa semente muito próxima do PT em seus primórdios, galvanizando apoios e representações importantes, como o movimento negro e o feminino, a maioria através de mandatos coletivos, o que é uma novidade no sistema legal e eleitoral. Também elegeu o primeiro prefeito de capital num Estado importante (Pará).
Também o PSB e o PDT mantiveram posições importantes, principalmente no Nordeste, se transformando, junto com o PSOL, na alternativa mais forte ao governo Bolsonaro nas próximas eleições presidenciais, ocupando o recuo do PT neste campo político. Mas analisando o número de prefeituras, registraram diminuição, ainda que moderada.
Mas não somente o PT foi o grande perdedor neste pleito. Também as forças mais à direita, vinculadas a Bolsonaro, tiveram uma votação insignificante nos grandes centros. A maioria dos candidatos apoiados, explicitamente por Bolsonaro, naufragou nas urnas, dando conta da pouca influência eleitoral do Presidente.
O que se viu foi enorme avanço da chamada centro-direita (MDB, PP, PSD e DEM), que formam o chamado “centrão”, reconhecido pelo fisiologismo e adesismo. O MDB, embora tenha eleito o maior número (251) de prefeitos, diminuiu sua participação, devido ao avanço principalmente do PP, PSD e DEM, este o que mais cresceu em números absolutos na comparação com o último pleito (pulou de 266 para 464 prefeitos). Também foram os que registraram o maior incremento de vereadores (6.346, 5.964 e 4.341), num aumento consistente de sua força política. A direita mais escancarada também avançou grandemente, especialmente o Republicanos, que dobrou sua representação, mas restrito aos pequenos currais eleitorais.
Por fim, o PSDB, embora com vitória em grandes centros (a ponto de governar uma parcela maior da população nos municípios do país), diminuiu consideravelmente o número de prefeituras (de 785 para 520).
No ápice da crise sanitária e econômica o que parece emergir deste pleito é o quase sepultamento do PT como força política eleitoral e o enfraquecimento de Bolsonaro, num certo cansaço dos “salvadores da pátria”, neste momento crucial do país. Aumentou o desencanto com a política e retornaram os velhos atores (Centrão).
A eleição é um mero retrato. Perdeu o PT e o PSDB, acabando com uma polarização do passado. Também Bolsonaro. Avançou a esquerda, alternativa ao PT, e principalmente a centro-direita: a grande vencedora.
A agudização das crises sanitária e econômica nos próximos meses podem radicalizar a aparente normalidade e o movimento do eleitorado para uma posição mais ao centro da vida política, alterando profundamente esta tendência.
Flávio Sant’Anna Xavier é procurador federal e escritor