Angela Maria Zanirato Salomão


Iniciática
atravessei meu mar
morto
pra renascer ancoradouro de mim
meus barcos naufragados
submergiram à fúria de minhas ondas internas
cicatrizei ferida do casco
fechei vãos
preenchi vazios
- já entendo de tormentas e tsunamis
sou anfíbia
na noite plena de peixes.
Rosa da resistência
planto uma rosa vermelha
que resista à maçã da bruxa
deixada na calçada
planto uma rosa vermelha
que resista à clorofila dos cabelos platinados
que floresça no cano das botas
estoure a boca do fuzil
planto uma rosa vermelha
que vá à luta
armada de seiva
que não esqueça seus motivos
assim como a roda viva não esquece sua engenharia
planto uma rosa vermelha
e que o jardineiro jamais seja acusado
de decepar as próprias mãos na poda
rosa vermelha
que enfeite celas
peito de prostitutas
bancos de sangue
de sêmen
de leite
acampamentos
e feiras da lua
planto uma rosa vermelha
e não me preocupo com o ângulo
da fotografia
só com sua rota
de colisão com os fascistas
planto uma rosa vermelha à prova de balas
de tropas de elite
de canhões
uma rosa chumbo liberta
onde as mãos que a busquem
pela ânsia do encontro
nunca estejam satisfeitas.
Vigília
meus olhos em estado de alerta
uma aflição congênita no peito
sofro em conta gotas
a minha cara, minha cara
de guerreira vencida
em labirínticas noites
há formatação no silêncio
coração arritimico: 120/140
- toma meu pulso
- confere a ansiedade
confirma!
há uma plasticidade viva na insônia
me recuso a dormir
preciso vigiar-me
ouvir-me
acomodar meus fantasmas
lançar pedidos de socorro
em vãos
logo vai amanhecer
comme d'habitué
o pássaro vai cantar
penso nas Marias e Rosas
que também sofrem
solitárias
o arco do dia se abre em cinzas
o dia também tem seus estatutos.
Achados e perdidos
na casa que me habita
rugem assoalhos
as paredes gotejam solidão
a fome tem caras e bocas amarelas
peitos esgotados enfeitam a sala
meninas menstruam azuis
a casa que me habita
não tem capacho de boas vindas
a porta nunca é aberta
aranhas constroem suas teias
redes que dão colo às crianças
sobreviventes de mim
há um relógio secular na casa
a gritar as horas
e devolve-las secas
como a foto de Kevin Karter
o vazio da casa preenche todos os espaços
a toalha guarda as lágrimas chorada por todos
rotos vestidos rosas
questionam a inútil existência
Curtos circuitos
como eram sagrados aqueles tempos
em que o dia não gastava nunca
e o sol nos olhos dava claras ideias
uma casa redonda pra brincar de ciranda
como eram sagrados todos aqueles dias
da perua combi que voava
ou do opala amarelo encantado
tudo filmado no relógio parado
entorpecimento de neons nos olhos
a música, um imã colado no peito
e a gente quase morria como cigarra
mas também chovemos por dentro e nos molhamos
e a metamemória não ensina calçar sapatos
é um caminhar em silêncio com meias trocadas
e recolher os olhos
já que o sono não vem
lamber os tarjas pretas como beijos demorados
o tempo não responde
só pergunta
e o sagrado se profana
o longo dia engana
com sua voz rouca /trovões no peito
oferece delírios
fios desencapados nos chapéus
curtos circuitos
e dedo na tomada.
Segunda
o não-lugar do domingo
a realidade estapeia a cara
não me ajeito com essa máscara de oxigênio
não me ajeito com esses corredores assépticos
as brancas paredes
a segunda feira tinge meus olhos da ressaca do domingo
sofro de excesso de lucidez na segunda
as manchetes entopem meu nariz
quero voltar ao domingo
ao sábado
quero voltar no tempo das cegonhas e seus bicos
aos bicos do peito materno
ao cordão umbilical
ao ventre
quero ser concebida
no domingo
esse dia inútil
o começo do fim em mim
Meu canto não tem canto
de que servem asas
se o voo está interdito?
liberdade eu canto
mesmo que não seja livre
tente voar na cela solitária
tente fixar a flor no teto
há perímetros que não comportam
delicadezas
meu canto é áspero, grave e bruto
moe o osso
abre as grades
dá voz ao monstro
há tempos sombrios
de cantos internos
- coloque o ouvido em meu peito
e ouça o canto da desistência.
Grafite
escreverei nos muros a palavra dor
a minha dor
calçarei luvas
para não ferir mais as mãos
ferirei o muro
que ferirá a rua
o bairro
e a cidade toda irá sangrar
em cortes abertos
a minha dor vai machucar o mundo
eu não doerei sozinha.
-eu sempre soube:
-a dor é coletiva.
Re(verso)
sobre o poema dormem virgens
véus de noivas
rios de leite
peitos
partos agendados
buquê de flores
sobre o poema não há revoluções
sobre o poema reaças vociferam
sobre o poema livros de Olavo de Carvalho
e dândis desfilam
sobre o poema propagandas de margarinas
bebês rosados
sobre o poema arroz integral
dentes de porcelana
aveia
salmão
sob o poema
cintos de castidade
burcas e hábitos
sob o poema dorme a gestante na marquise
e alguém declama um poema de Sérgio Vaz
sob o poema a gambiarra na energia elétrica
bigodes de gatos
fetos
sangue
corpos
carbono
fotos
epitáfios
ossos
pele
varejeiras
vermes
grafites hip hop
bichos noturnos
sob o poema a lavagem
de porcos de fraque e cartola
sob o poema discurso enterrado e protesto
em branco.
Eu vejo o movimento
Do movimento
E todos se movem para o nada
A mão estática segura o verso
Rasga a palavra pensada
Roda viva que prensa
Pensares de dentro
Pesares de fora
Trituro o momento
(tudo tem um centro)
E a gente converge para fora
Todos correm de todos
De tudo
E essa geografia desumana
Me comove

Angela Maria Zanirato Salomão
Professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá.
Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em três Antologias: “Um olhar Sobre” coletânea da APEP em 2014, “Filhas de Maria e Valentim”, 2015 e “Um Olhar Sobre”, coletânea da APEP 2017. Possui poemas publicados nos sites Blocos Online, Parol, Movimiento Poetas del Mundo, Antologia do Mapa Cultural Paulista edição 2015/2016, versão ebook, Revista de Ouro, Revista Ver-O-Poema, InComunidade e Revista Mallamargens.