Henrique Dória


SÓ HÁ JUSTIÇA NO TEMPO
Só há justiça no tempo
E igualdade na morte.
Começamos por beber leite em conchas
Brandas antes de ele passar
Para búzios vazios
Onde o leite se transformará em vinho
Porque ainda não terminaram os milagres.
Depois o vinho só
Resta em folhas rotas
Voando
Para o frio da noite
Escoando-se pela terra seca.
Aí será engolido pelas covas
Fazendo-nos hóspedes bêbados do pó
Até nos perdermos todos por igual
Sem canções nem gritos
No nunca ouvido som do escuro.
CORRO EM BUSCA DA TUA MORTE
Corro em busca de tua Morte
Ah meu leão alado
Um dia hei-de caçar-te
Montado sobre um elefante
Hei-de ser mais rápido
Que a luz branca das tuas asas
Mais feroz do que as tuas garras
Mais inclemente do que o vento.
Sou um caçador de leões
À entrada dos palácios.
Ergo a minha lança de bronze
Atiro-a contra a pedra do teu poder
De donde jorrará teu sangue
Frio e a minha lança
Será mais cruel que o Tempo
Quando atingir o Nada.
PRISIONEIRO
Sou prisioneiro numa casa
Guardada por um invisível
Silencioso carcereiro
Mas não aprisionado em mim.
O meu coração mantém a sua janela
Aberta para o mar a que pertence
Com a lua e o sol
Com o tigre de olhos indecifráveis
Com o grou coroado
Com as rãs coaxando o cio
Com o sereno choroso cherne
Com as cegas estrelas do mar
Com os distantes embondeiros
Com as pedras sacrificadas à solidão.
Sou prisioneiro mas os meus braços
Vão para ti com o vento
E o sentimento do tempo.
Oh mulher de corpo escarlate
Esta noite sonhei que não estava só
Porque tinha a língua
Na boca do mealheiro.
CAMINHA COMIGO
Caminha comigo na floresta meu filho
Os caminhos são estreitos
Nem caminhos são.
As árvores movem-se
São fluidas, são peixes
Nem árvores são.
Vegetação excessiva
Impaciente, silvas, silvos
Que nem silvos são.
Aqui não há clareiras
Aqui entra uma luz inanimada
Que nem luz é.
Vem do alto o odor verde
Vem da terra o odor da morte
Que nem morte é.
Gritos, ruídos, estrondos
Palavras, palavras, palavras
Que nem palavras são.
Segura-te a mim meu filho
Havemos de regressar a casa, ao mar
Ao mar apenas ondas, ondas, ondas
Que só espuma são.
LÂMPADA, VULVA, ATÉ ONDE
Lâmpada, vulva, até onde
Poderei arder-te
Sonhar dentro dos sonhos
Para te manter acesa?
O longe é apenas alma
Ou o que sentimos dela
Separados animais cativos
Por dentro de si mesmos
Consagremos os nossos corações em alegria
Enquanto o nosso sangue arde
Até à chama fria
Pois nada nos pertence em sete rosas
De pétalas mais breves
Do que as mariposas.
QUANTO PESA A VIDA?
Quanto pesa a vida?
A vida de um homem é mais pesada
Que o homem
Ou mal suporta o peso do seu riso?
A sua sombra cai
Sobre ele como um velho
Muro com entranhas de musgo
Quando lembra a morte que há-de vir
Ou a vida que não viveu?
As palavras que nascem das suas mãos
São à noite as pedras por onde passa
O seu caminho
Ou tão só a água da sua miragem?
Saberá a irmã árvore pensativa
Que o seu peso é o lume
Que sobe ao céu
Ou o corpo que ela leva
Ao útero da terra?
E tu homem tão triângulo
Tão parábola sabe que
O sofrimento o medo a maldição
O silêncio as palavras perdidas
Tão pesadas tão muralhas
Só
As suportas
Porque alguma poesia alguma música
São o Atlas do teu mundo.
