Leonardo Almeida Filho



Esse mistério
Sempre achei
que meu coração
fosse uma mesa de pôquer
numa sala mal iluminada
cheirando a cigarro e bebida
em um jogo em que ninguém blefa
onde ninguém ganha
e que nunca tem fim
As cartas, sempre marcadas,
enchendo as mãos de esperança
e frustração
e cada jogador, derrotado,
se embriagando e se envenenando
para morrer hoje
e ressurgir amanhã
sempre e sempre e sempre.
Mas não, percebi que
meu coração é muito mais
mais que uma mesa de pôquer
que uma sala escura
que cigarros ou cartas marcadas
mais que jogadores
mais que o próprio jogo.
Ele é a sensação da derrota
o sabor da bebida e da peçonha
É a própria embriaguez
e o estertor do envenenado.
Meu coração, esse mistério,
é a morte em um dia
é a vida em outro
sempre e sempre e sempre.
A lâmpada encantada
Sim, o amor é piegas
e, mais que ridículas,
suas cartas são piegas.
Seus poemas, toscos,
seus versos, clichês,
rasteira, sua própria ideia,
chã, vazia
e, às vezes, vã.
O amor é uma rã no deserto
afundando na areia
no mais puro desespero.
Um cristalzinho derretendo-se
na estrela mais distante
e fria, fria, fria...
Uma sereia que se afoga
e lentamente mergulha
na escuridão do abismo,
na mais profunda solidão.
O sinal de ocupado no telefone,
no banheiro do avião,
na fila do caixa.
O amor é sempre espera,
ansiedade e impaciência.
Mas, sim, eu sei que o amor é piegas
e suas cartas, mais que ridículas, piegas
e todas as suas declarações, clichês.
Um perfurar constante,
um gotejar permanente,
um esfolar-se em gozo.
O amor é assim, desconcertante
como um santo puto e louco
que se masturba na abside,
em silêncio e sacralidade,
sob a benção do senhor dos danados
e da perdição desejada.
Como a mariposa que se queima,
que se imola
no calor da lâmpada.
Poeminha japonês (aflições de uma máscara)
para Mishima
Um dia espada,
outro crisântemo
Quem há de não saber
o quão distante são
horizonte e vertigem,
irmãos da miragem,
no peito de um homem?
E no entanto, em
perto, dentro, aqui,
como raiz de rododendros
em jardim de pedras,
ígnea delicadeza,
plácida rutilância,
seiva e magma,
pulsação e silêncio.
Se o avesso é vero
e vário o exposto,
eis por que espada,
eis por que crisântemo,
eis por que o corte,
eis por que eu sangro.
O gato-dragão
(sobre um poema vitoriano )
Existe um gato,
gato-dragão,
de garras afiadíssimas
como o olhar da minha mãe,
a mão pesada do meu pai.
À noite, escuto sua presença
a ronronar na escuridão do quarto
e, em silêncio, me encolho
como fosse uma bola de lã,
na vã esperança de um lúdico momento.
Pela manhã, as marcas no meu corpo
e as manchas de sangue
em meu lençol
me ensinam que
o gato-dragão
não gosta de brincar.
Bruxas e fadas
Houve um tempo
em que eu cria em fadas,
e, só por crer, havia.
Temia as bruxas
e seus dentes de dragão.
Era sempre manhã
naquele tempo
de fadas e de bruxas.
Tempo de romãs maduras
e carinhos tépidos.
Ah, tempo de beijos
como pitangas se abrindo de maduras.
Cães emplumados gorjeavam
sobre palmeiras selvagens
abanando suas caudas coloridas.
Havia sol em cada gota
de chuva, de orvalho e de suor.
Eram tempos de sorrisos largos,
abraços longos
e a esperança brincava em cada porta.
Os olhos se vestiram de escuridão
- vertendo noites intermináveis -
e os corações, de pedra,
espargiram mau cheiro
e desânimo.
Agora é sempre noite
mesmo quando dia.
Cada fada degolada em cerol
apodreceu no esgoto
a céu aberto.
As bruxas se esconderam
no espaço entre
o fora e o dentro
ali, na greta escura
que pulsa, fétida,
no limiar da vigília
um pouco antes do pesadelo
e do abismo do sono profundo
Com seus dentes de dragão à mostra
sempre voltam
mas as fadas, não.

Leonardo Almeida Filho, paraibano de nascimento (Campina Grande, 1960), candango de criação, professor universitário, escritor, ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), com dissertação sobre a obra de Graciliano Ramos (publicada pela Editora da UnB em 2008 sob o título “Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito”). Alguns trabalhos publicados: “O livro de Loraine” (romance, 1998), “logomaquia: um manefasto” (híbrido, 2008); contos em coletâneas organizadas pelo escritor Ronaldo Cagiano “Antologia do Conto Brasiliense” (2004) e “Todas as gerações” (2007) e pelo Prêmio SESC de contos Machado de Assis (2011); poesias em coletâneas organizadas pelo escritor Joanyr de Oliveira Poemas para Brasília (2004) e pelo Prêmio SESC de poesias Carlos Drummond de Andrade (2011). Em 2010, pela Editora Hinterlândia, publicou, com os professores Hermenegildo Bastos e Bel Brunacci, o livro “Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem”, que aborda o cenário político-cultural do Brasil em fins de 1942, no cinqüentenário do escritor Graciliano Ramos. Publicou em 2014, pela editora e-galaxia, o volume de contos “Nebulosa fauna & outras histórias perversas”. Publicou em 2018 o volume de poesias “Babelical”, pela Editora Patuá e em 2019 o romance “Grande Mar Oceano”, pela Gato Bravo. Sairá brevemente o seu novo livro de poemas, “Tutano”, editado pela Patuá. Email: leo.almeidafilho@gmail.com