Nilma Lacerda


Se, como Jorge Vicente, tivesse a escolha entre
“ser humano e ser presa de um destino
de pequenos nadas”
e
“... um cavalo que passa devagar
e que me desabriga de mim mesmo”
iria como ele ao lado do cavalo, devagar, sem qualquer certeza sobre o ativo ou o passivo de escolher, menina debruçada sobre cartazes à frente de algumas construções – “Aqui há Otis” – e propagandas de revistas: “Modess: o suficiente para um mês custa menos que um vidrinho de esmalte”. Eu não perguntava o que estava por trás dessas palavras, ninguém me esclarecia. Foram meus primeiros poemas.
O cavalo de Jorge Vicente é ofício sem arroubos, pede linguagem radical, sem fingimentos, despojada das cercas da cultura e que atinja a pele no lugar em que ela não recobre uma estrutura corpórea, mas em que deixa ver
“aqui um homem e a matéria dentro dele:
uma supernova”
Fruto de um
“acto de amor inacabado”,
para ele a poesia é clara quanto à oposição entre
“a linguagem e a natural visceralidade do poema”,
que não tem a dar
“senão o próprio desejo de
viver”.
Este desejo de viver me faz, às vezes, ficar suspensa daqui pra lá, de lá pra cá. Viajar foi prazer e busca autorizados na maturidade, pagas as contas das filhas crescendo, os empregos (ou desempregos) garantidos. Veio, por outro lado, como prêmio de trabalho, em consideração às práticas e reflexões acumuladas. Em certo momento, a supernova mostrou-se e sem pejo lá se foi o corpo para a ponte aérea. Numa dessas, estou em Lisboa, o amigo do Rio recomenda, “vê se encontra o Jorge Vicente, um cara legal, tenho trocado umas coisas com ele”. Obediente e amiga, pego o contato, qualquer um desses contatos eletrônicos, eficiente, ágil, o poeta logo responde, informa do lançamento de seu livro. Não poderei estar presente, prometo comprá-lo mais tarde, antes de voltar ao Brasil. Cumpro minha promessa, a livraria Leituria é um lugar agradável, o Vítor veio me atender fora de horas, para que não voltasse de mãos abanando.
Chego ao Brasil, aviso o meu amigo de que o livro está comigo, “vou ler, depois te dou”. Não demorei a ler, demorei a fazer isso que faço agora, colocar no texto de Jorge Vicente minhas marcas de leitora. E realizar também aqui a devida ponte aérea, falando a Jorge Vicente da poesia de Alexandre Brandão, que avisa não ser poeta, mas em salvaguarda dá ao volume que editou não faz muito o título de Nenhuma poesia: uma antologia. Brandão não é poeta, mas escreve poesia, conforme admite. E o livro é uma coletânea de seus quarenta anos na cidade do Rio de Janeiro. Esta cidade que já foi das melhores do Brasil e hoje é..., hoje é não sei o que diga. No arco de tempo que vai de minha juventude a esta maturidade impaciente, assisti a degradação se instalar na minha cidade, o rasurar diário do que é decência, esperança e confiança. Tenho visto – e continuo a ver – governantes impudicos e incompetentes em total desprezo pelos cuidados com a cidade. Crimes, alguns aterradores, são cometidos contra a população; balas saem às soltas à cata da vítima incauta a caminho do trabalho, de levar filho à escola etc. etc. etc.
Como Brandão, sou um
“andrajo celestial”,
busco “A matéria do poema” e
“Não sei nada disso:
Ando escrevendo muito
E não estou triste
– estou é puto.”
Confio no texto para deixar claro que no Brasil puto não tem o mesmo sentido que em Portugal. E me valho deste metapoema para cumprir o objetivo de toda ponte aérea, levar de um lugar a outro, trazer de volta ao lugar de partida. Trago para Alexandre o livro de Jorge Vicente, levo a Jorge Vicente o livro de Brandão.
Brandão, este servidor da literatura, que entre outras tarefas manteve o projeto “E tome palavra”. Convidava a poeta ou o poeta, dava uma palavra para que em poucos caracteres se desenvolvesse um texto, publicava em seu blog. Primorosa divulgação de nomes e bons trabalhos. A Jorge Vicente coube “Nódoa”. Aqui (link ao final), como nos exorcismos de cavalo que passa devagar, viver não é (não deve ser) “a dupla matéria de escrever”, mas o ato de dar “órgãos e pele” para desenhar numa folha em branco “o corpo desejoso da escrita”. Uma das âncoras do poeta, o repúdio à dor fingida replica-se em sua página de Facebook: “Poesia é vivência”. Sem canal para a metafísica, o poema sai para seu destino de matéria insubmergível destinada a fazer-se ao largo. Pode ser que encontre na praia o cavalo
“... assaltando
vidas e casas e paisagens
e talvez um pouco desta ordem
natural das coisas”
Esta ordem natural das coisas estarrece Brandão, em “Matar”:
“Neste outono dominado pelo verão
enquanto suo, escrevo e guardo o choro
vejo a alegria mórbida de uns tantos homens e
penso que, se me fosse dado o direito de tirar a vida de alguma coisa,
sangraria a palavra alma”.
Vivência e memória, a matéria deste poeta, que se reconhece
“... gaiola e não passarinho”
Espaço de contenção, o cara de Minas tem o mar de um falso Rio para contemplar. Retém a memória, o tempo, e como tantos outros mineiros que vieram para o Rio conserva essa necessidade de diálogo com o tempo, nos grãos de vida armazenados ante seu consentimento. Com cerimônia, Brandão pede à Senhora do Tempo:
“... árvore e sombra
apenas por um instante.”
Abrasado pelo calor, sob a sombra, em refrigério, dobrado sobre si, este poeta do Rio oferta à cidade, à família, a quem o lê, fragmentos oscilantes da linha chamada vida.
A viagem foi tranquila, vocês como boa companhia durante o percurso. Abri os livros, exibi trechos indicados por minhas satisfações e agonias. Espero que sigam as pistas, mesmo sem indicação de título ou página, como se deve fazer com qualquer livro, especialmente estes, que rasgam o espaço aéreo entre Portugal e Brasil para aproximar dois poetas. Um trata a poesia como vivência, expressão visceral, e sabendo de seus limites de ação recusa o engajamento, assim como reconhece não trazer nada que mude a história da literatura. Opta por “um cavalo que passa devagar”. A salvo da subjetividade, tanto quanto da objetividade, devagar constrói a poesia que vá, jangada, a caminho do mar, esse mar português que ao Brasil é dado ver sempre do outro lado.
O outro poeta, que conheço de perto em amizade de mais de 30 anos e leitura de seus outros volumes de contos e de crônicas, congrega em Nenhuma poesia a vivência do poliedro vertiginoso que é uma grande cidade, e onde cabem igualmente as quedas pessoais e outras coisas. O mar não é um caminho para o poeta do Rio. Nos diálogos com o tempo, a memória aponta a volta àquele espaço que talvez não consigamos deixar nunca, um tempo pleno de cavalos passando devagar.
Conversam bem, em bom quilate, os dois poetas.
http://noosso.blogspot.com/2018/06/e-tome-palavra-com-jorge-vicente.html
Acesso em 01/09/2020

Nome do livro: “Nenhuma poesia, uma antologia”
Autor: Alexandro Brandão
Editora: Patuá
Ano de edição: 2020
123 páginas

Nome do livro: “Cavalo que passa devagar”
Autor: Jorge Vicente
Editora: voltad’mar
Ano de edição: 2019
Link para o artigo de lançamento na edição 81 de InComunidade: http://www.incomunidade.com/v81/art.php?art=203&fbclid=IwAR1EJgCH_XsWwcS8HP1hN_LvvHg8WgJFKBSakcMsx5HnAvNGldV3OnFQb44

Nilma Lacerda

Jorge Vicente

Alexandre Brandão
Nilma Lacerda: Escritora brasileira, nascida no Rio de Janeiro, autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Pégaso na sala de jantar. Tradutora, ensaísta, recebeu os prêmios Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil e outros. Escreve para a Revista Pessoa de Literatura Lusófona (www.revistapessoa.com) e São Paulo Review (www.saopauloreview).
Jorge Vicente nasceu em 1974, em Lisboa, e desde cedo se interessou por poesia. Com Mestrado em Ciências Documentais, tem poemas publicados em diversas antologias literárias e revistas, participando, igualmente, nas listas de discussão Encontro de Escritas, Amante das Leituras e CantOrfeu. Faz parte da direcção editorial da revista online Incomunidade. Tem cinco livros publicados, sendo o último cavalo que passa devagar (voltad’mar: 2019).
Contacto: jorgevicente.seacarrier@gmail.com
Alexandre Brandão, escritor brasileiro, estreou na literatura nos anos de 1980 publicando poemas no Suplemento Literário de Minas Gerais. Depois disso, lançou sete livros (dois com a Patuá) de contos e crônicas. Agora, ao completar quarenta anos de Rio de Janeiro, para onde se mudou saindo de Minas Gerais, reúne, como uma trilha sonora da vida, sua esparsa poesia.