Ricardo Ramos Filho


O leitor amigo pode ficar tranquilo, o título não promete, mas não pretendo escrever crônica piegas. As coisas não andam bem por aqui. Nossa Terra sabidamente plana, como tão bem garantem os negacionistas, gente ligada visceralmente às ideias mais conservadoras e destras, convive com pandemia, destruição, crueldades diversas. Sinto necessidade, mostra-se urgente mesmo para mim, encontrar alguma saída. Talvez ela esteja na beleza. Colocando-se de lado a futilidade, não me refiro a coisas bonitinhas, falo do belo artístico e da natureza, tem-me sido capital pensar em algum tipo de escapatória para a humanidade. Mergulhados em um mal não explicado pelas mais variadas teodiceias, mas ombreado com Rousseau ao considerar não ser ele invenção de Deus nem do homem, mas sim da sociedade, procuro enxergar no final do túnel alguma luz.
Vinícius de Moraes, jocosamente, pediu certa vez desculpas às muito feias, a beleza seria fundamental. Jamais diria tal coisa hoje. Os versos machistas, e ele falou de amor muitas vezes de um jeito estranho, próprio de um lugar de fala não mais admitido atualmente, seriam evitados agora. Eram permitidos em um pretérito não tão remoto. O Poetinha, contudo, inteligente e afiado politicamente, evitaria errar tão crassamente ao poetar nos dias atuais. Pergunto-me, porém, fugindo ao sentido dado pelo criador da garota de Ipanema, se não seria mesmo a beleza tão decisiva. Salvaria o mundo?
Foi Dostoiévski, em O idiota, quem forjou a frase título deste texto. Anualmente ele viajava para Dresden, Alemanha, só para ficar horas observando a Madona Sixtina de Rafael. Em outro livro, Os irmãos Karamazov, ele continuaria preocupado com a questão. Em determinada passagem, o ateu Ippolit pergunta ao Príncipe Michkin se “A beleza salvará o mundo?” O nobre nada responde. Vai até um jovem, cerca de dezoito anos, agonizando, e com ele fica, cheio de amor e compaixão, até vê-lo morto. O escritor russo desejava mostrar ser a beleza o que nos leva ao amor compartilhado com a dor. Para ele, enquanto fossemos capaz desta postura, o mundo sempre seria salvo. A saída seria saber suportar amor e dor misturados. O mais estranho é observar tal preocupação em um autor capaz de criar um universo com zonas tão obscuras, perversas, exibindo frequentemente almas destruídas e dilaceradas. Na vida pessoal Dostoiévski foi um homem perturbado. A contemplação da beleza do quadro citado propiciaria a descarga de desordens emocionais necessária. Sem ela, certamente ficaria desesperado dos homens e de si mesmo ante os obstáculos encontrados em seu caminho.
Ontem coloquei a máscara e fui ao mercadinho aqui perto de casa. No caminho fui surpreendido por um casal de tucanos. Eles passaram voando e pousaram em uma árvore bem perto de mim. Parei e fiquei contemplando-os. Lindos! Nunca havia visto as aves fora dos livros. Bem menores do imaginado, observei. Cores fortes e marcadas. Os bicos do casal imensos. Imaginei se não dificultavam o voo. Certamente não. Haviam acabado de interromper um movimento gracioso antes de chegarem ao galho onde, lado a lado, trocavam bicadas-beijos. Foi como se os ponteiros do relógio parassem. Esquecido, queixo apontado para cima, respirando mal debaixo do pano a cobrir-me nariz e boca, senti uma espécie de carinho imenso por aqueles pássaros. Tive certeza de haver sob a proteção contra o vírus um sorriso meio bobo. Não sei se era eu quem estava ali. Perdi a noção de mim, do tempo, do espaço ao redor. Eu e os tucanos. Só. E apaixonado pelos bichos, preocupei-me com sua presença na cidade. Por quê? Expulsos de seu habitat natural encontraram alimento mais fácil por aqui. Somos um país de queimadas e violência. Amor e dor. Sim. A beleza salvará o mundo.
Setembro/2020

Ricardo Ramos Filho é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior. Professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela USP. Ministra cursos e oficinas, trabalha como orientador literário. É cronista do Escritablog e da revista InComunidade. Presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio proprietário da Ricardo Filho Eventos Literários atua como produtor cultural. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).